Identificação
[BNP/E3, 141 – 51-55]
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Vejamos agora, reportando-nos à nossa já feita divisão dos vários períodos em estádios, em que hora dos períodos temos de ir procurar esses poetas, esses filósofos que servem à nossa análise para nos revelar a alma da corrente. Verifica-se, sem dificuldade, que a estética de uma corrente fica determinada (é natural) quando, ao entrar no seu 2º estádio, ela atinge a sua capacidade máxima de expressão. É o estádio-Shakespeare no período inglês, e, no período francês, o estádio Hugo o poeta. E como, nesse mesmo estádio, ao atingir a capacidade máxima de expressão, ele inevitavelmente coatinge a máxima capacidade de ideação, o que da metafísica da corrente se encontra nos poetas da alvorada no segundo estádio da corrente literária. Claro está que quanto mais poetas houver pelo 2º estádio fora e tiver o estádio, tanto mais auxílio, especialista para a determinação da metafísica da corrente – que a estética deve ser deduzível da expressão uma vez chegando ao auge marcante pelo artista da corrente no seu estético segmento. É também {…}
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II.
Sabido que uma corrente literária é a expressão pela literatura de uma comum noção do mundo, da arte e da vida – posto de parte o que é individual, por individual precisamente –, o estádio psicológico de qualquer corrente envolve o destrinçar-lhe a alma na sua tripla unidade de atitudes. Que três aspectos não esses do seu espírito uno? O primeiro é a sua metafísica – isto é, o conceito do universo e das coisas que subjaz às manifestações desse conceito. O segundo é a sua estética – curando bem que por isto não se quer dizer as suas teorias de arte (essas pertencem, como parte das suas teorias das coisas, à sua metafísica), mas ao seu modo de ser literário, à sua alma literária. O terceiro é
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neste, segundo, estádio que os filósofos do tempo aparecem – do meio para o fim do estádio, nunca no seu princípio. – Quanto à sociologia da época, só a podem trair de algum modo os poetas do 2º para o 3º estádio, os filósofos e os tratadistas do mesmo período, e os acontecimentos. Os poetas do princípio do estádio segundo só a um raciocínio muito pacientemente perscrutador de obscuras intuições filosóficas poderá entresugerir uma ideia dessa poética realização social.
Como em anterior artigo mostrámos, a nova poesia portuguesa desde a Oração à Luz entrou no 2º estádio. Podemos portanto arrancar-lhe o segredo da sua estética, nitidamente; com menos nitidez, e aproximadamente, entrever a sua metafísica; e, para o estudo se não trunque, podemos dizer |a cor| das luzes vagas da sociologia ainda indecisas no horizonte da história.
III
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{…} a sua sociologia – isto quer dizer as teorias sociais que finalmente são a repercussão social, o final resultado prático da corrente social de que a corrente literária é (no caso dos períodos máximos) a interpretação quimérica – {…}
O método analítico a empregar cria ligeiramente conforme qual destes factos se investiga. Assim, no determinar a estética da corrente, a análise incide directamente sobre os poetas, porque esses, representando o máximo de emoção e de requinte de expressão, mais do que os pensadores, são representativos do momento-alma da raça e dos processos mentais que, fazendo arte, o representam. Ao inquirir da metafísica, a análise divide-se entre as obras de arte – destacando sempre os poetas – e as que dão expressão directamente e intencionalmente filosófica ao conceito-do-universo característico da corrente. Nos poetas este já, mas em estado de emocionação e de inconsciência, o conceito-do-universo característico da corrente; por isso sem auxílio do raciocí-
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nio da filosofia e dos filósofos, não se pode obter mais do que um |circunlóquio em matéria| metafísica, em penumbra de teorias-do-mundo. Igual nos seria ir pedir ao filósofo, exclusivamente, a alma metafísica do pensar. O filósofo nem sempre a dá. Dá parte, pertence-lhe – isso é inevitável.
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3(a)
– Semelhante método tem de ser aplicado no estudo da sociologia da corrente. Aí temos que beber as três fontes: os resultados dos nossos poetas, as teorias sociológicas dos filósofos e aqueles que se acham contidas ou sejam deduzidas das obras dos poetas. Nas obras dos poetas vem geralmente a tendência, a aspiração, a perfeição nas dos filósofos: no método político, vemos a fusão do elemento intenção com o elemento realidade. Assim {…}
Mas assim como cada poeta de uma corrente, ao destacar a sua individualidade, acrescenta-a no estilo geral da corrente, e, ispo facto, deduz desse estilo geral elementos que o acrescentamento da sua individualidade faz, por incompatíveis, desaparecer, assim também com o filósofo acontece, mas talvez mais, porque a obra do raciocínio é quase sempre mais individual do que a de emoção, por mais extensamente elaborada na consciência, por isso, e, depois, por mais alheada da alma colectiva, que apenas sente – se chegue a pensar, pensa emotiva ou imaginativa mas nunca raciocinadamente. #
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Um sistema metafísico é um temperamento expresso em raciocínios; e assim como as palavras podem falhar à ideia, o raciocínio pode reproduzir incompletamente um temperamento. Geralmente quanto mais a tal época, mais a filosofia se casa com {…}
Bacon é muito mais filósofo-representativo do isabelianismo, do que outro da época do romantismo fez.
# Individualizando a corrente o filósofo (como parte) limita-a; ela é sempre mais vasta do que ele; pode às vezes incluí-lo a ele e a um contrário, como, no caso da corrente grega, de Platão e Aristóteles. E bem mais.
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O segundo período é exclusivamente poesia da alma; é exclusivamente subjectivo. A nossa nova poesia é subjectiva e objectiva: é poesia da alma da natureza.
A religiosidade do simbolismo não é um resultado da sua estética e da sua alma: é um sintoma claro da sua natureza degenerativa, porque o seu religiosismo é católico, e o religiosismo, se tiver religiosidade teria uma religiosidade nova.
Apontamentos manuscritos preparatórios do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico», in A Águia, 2ª série, nos 9, 11, 12, Porto, Setembro, Novembro, Dezembro de 1912, pp. 86-94, 153-157, 188-192.