Identificação
[BNP/E3, 14E – 5]
“Morrem Jovens os que[1] os Deuses amam”: é um preceito da sabedoria antiga. E por certo, a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concebem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama[,] ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Por isso nos chamam, ou com a morte que nos afasta dos homens, ou com a desgraça que a afasta de nós.
Não teve |Mário de| Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, lhe serviu de refúgio e de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os aceita. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria “grandeza”. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e as sementes dispersas do que poderia sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos, porém alargou seus muros até aos confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos jograis. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja. Os Deuses o quiseram assim. Começou dispersos submersos {…}
Por isso hoje, mais que em outro tempo, se aplica à verdade a[2] sentença dos antigos. Se os Deuses os fadaram sem amor, morrem velhos e tristes, íncolas do desprezo e da execração.[3] Se com amor os fadaram, têm a felicidade de não durar. |Assim, num só gesto dos Deuses, recebeu Sá-Carneiro a grandeza e a morte: deram-lhe a maldição sublime do génio no abraço de fogo com que, queimando-o, o converteram na sua própria ígnea substância divina.|
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Alberto Caeiro é, cremos, o maior poeta do século vinte, porque é o mais completo subversor de todas as sensibilidades diversamente conhecidas, e de todas as fórmulas intelectuais variamente aceites. Viveu e passou obscuro e desconhecido. É esse (dizem os ocultistas) o distintivo[4] dos Mestres.
Os próprios gregos da grande[5] Grécia, criadores do Objectivismo, não atingiram[6] o Objectivismo Transcendente do assombroso português, a quem a Fama nada deu, porque ele nada lhe pediu; nem, se lhe pedisse[7], ela, (hoje tão injustamente pródiga) saberia que dar-lhe.
A nossa gratidão vai para os srs. António Caeiro da Silva e Júlio Manuel Caeiro, a cuja cortesia devemos a cedência destes poemas. A obra do Mestre compõe-se, além de destes, que formam o seu único livro inteiro, de “outros poemas e fragmentos”. Confiamos em que os seus detentores não tardarão em dá-la à publicidade, se não à celebridade, porque essa só a obtêm (hoje), parece, os que a não merecem.
A obra de Caeiro é mister que seja lida com uma atenção nova. Tudo é novo ali. Nem a substância intelectual, nem a arte das imagens, nem a própria figuração verbal têm precedentes nem alianças. Só a forma se ressente da indisciplina e da incoerência da nossa época. Os inovadores, por grandes que sejam, não podem ser tudo. E os grandes homens, disse Goethe, são da sua época só pelos seus defeitos.
[5v][8]
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- Ave atque vale.
- Sá-Carneiro.
- António Botto.
- Caeiro.
- Raul Leal.
- Montalvor.
- Fernando Pessoa.
- Álvaro de Campos.
[1] os que /quem\
[2] a /Na\
[3] do/a\ desprezo /indiferença\ e /ou\ da execração. /(;)\
[4] distintivo /(sinal)\
[5] grande /vera\
[6] atingiram /alcançaram\
[7] pedisse /(pedira)\
[8] 20/1/1923
I have outwatched the Lesser Wain, and seen
The remnant stars turn pale. But the used night
Has to no purpose[8] † my sleep, nor been
More long than it turned hours with no[8] delight. Thought’s the
Of all vain efforts, Learning’s vainest is.
Of all failed purposes, to know is most.
Effort’s own self is bother to no bliss.
But useless effort seeks but to have but
To lose in that and gain’s indeed to have lost.
So, day on day[8], I see the pale lost stars
Uselessly seen, and more on more I save
From the Time’s despair naught but whose being insane
And not, deep that many call to have
Idle in stress, because the use is none.
Having; deprived; soon having not begun.
Versão dactilografada, com apontamentos manuscritos, do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)», in Athena, nº2, Lisboa, Novembro de 1924, pp. 41-42.