Identificação
[BNP/E3, 14D – 35-36]
Antero.
A dúvida, o martírio moral de Antero parece-nos ter sido de três espécies. Primeiro, a dúvida e o martírio que provêem da luta entre uma constituição mental racionalista (quer pela sua {…}, quer pela sua força meramente) e um temperamento geral de crente. Bem sabemos que Antero abandonaria o cristianismo, que o arrancaria de todo o seu intelecto, mas sabemos também que o não pudera ou poderia arrancar do seu temperamento, da base da sua emoção. O Cristianismo estava ligado indissoluvelmente por longa e forte acumulação familial, ao espírito de Antero; nos períodos de debilidade ou apatia intelectual assaltava de repente a inteligência, mas, como esta permaneceu lúcida até ao fim, mas nunca a avassalou. Nos períodos de tristeza e de abatimento – semanas, horas, momentos quando o pensamento caía em sonolência, invadia-lhe o terreno o temperamental misticismo cristão. Segundo o grau de abatimento, ia longe ou não pelo domínio do pensamento dentro; e daqui
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o grau de tortura, porque, quanto mais apático e {…} acontecia estar o pensamento, mais forte surgia o sentimento |cristão| e quanto mais forte surgia, mais aprecia ser uma intuição, quase que uma intuição intelectual, da verdade. Estabelece-se então, até que o intelecto, plenamente despertado repele o sentimento, o estado de dúvida religiosa, que é profundamente angustioso, conquanto que pouco sentido dos homens do sul, em que a religião não é tão forte como nos do norte.
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O segundo elemento de martírio moral de Antero de Quental foi[1] o conflito entre o senso moral do poeta e a ausência de moral da natureza, a dedução pessimista superficialmente existente – nas fases e formas da luta pela vida contra a natureza, contra o homem, – contra tudo. Este aqui é pior que a da dúvida religiosa. Um espírito superior, razoavelmente de
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posse dos elementos da ciência das religiões (como Antero) não pode ser dominado muito tempo intelectualmente (not so!) pela dúvida religiosa; há uma solução que pode ser dolorosa, cruel para o sentimento, mas há-a. Sai-se dorido e confuso do dilema, mas sai-se. Mas a crença cristã, como todas as crenças, ainda que abolida dum espírito dum homem ou dum povo qualquer, deixa geralmente arraigados mais profundamente do que os seus dogmas metafísicos os seus dogmas morais – piedade, compaixão pelos humildes, etc. (o leitor conhece-os). Fica a moral, depois de desaparecer a metafísica. A razão é simples. Toda a metafísica diz respeito à inteligência primacialmente; a absurda metafísica do cristianismo facilmente cai diante de um desenvolvimento razoável da inteligência, quando essa, claro está, (não sendo muito grande) é acompanhada do desenvolvimento do senso moral, que procura sinceramente a verdade, com firmeza e sem tentações.
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Mas o que a religião deixa no senso moral não é tão fácil de eliminar ou contrariar, de mais a mais que um alto senso moral tende a ser susceptível (ou antes foi susceptibilizado) pela religião porque o senso moral não pertence directamente à inteligência; ou está mais longe dela.
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Com qualquer senso moral acontece isto; muito mais com um senso moral que é resíduo deixado pela religião. (Segue o que está acima).
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Mas nem o conflito entre o sentimento e o pensamento, nem aquele entre {…} constitui a suprema tortura dum grande pensador. Ao maior homem o conflito desaparece com a realidade – a tortura do mistério em si, o problema do ser, daquilo que realmente é. Dói esta {…} do calvário dum pensador – encontra-se, transido de paixão, frente a frente com o mistério.
[1] foi /era\