[BNP/E3, 14C – 59-60]
António Correia de Oliveira
I.
Não vem esta crítica a propósito de livro algum. Não a |sugere| circunstância alguma exterior. Parte apenas do nosso íntimo e espontâneo desejo de crítica e de análise, não no intento de ser acerbo, menos ainda na intenção de ser |melífluo|; mas somente do[1] propósito de compreender e de sentir-se compreender, na esperança que esta compreensão se estenda aos outros e que aos outros (quando não seja senão como incitamento à análise) aproveite.
Não conhecemos pessoalmente o sr. António Correia de Oliveira; não temos especial desejo de o conhecer, mas de continuar não o conhecendo. Não esperamos, se nunca o viermos a conhecer, ser privados de um factor importante para a nossa educação artística ou sentimental; nem cremos que, se o conhecermos, a S. Exa com suas opiniões {…} terá sobre nós qualquer influência maléfica ou depressiva.
[59v]
A nossa imparcialidade para com o sr. António Correia de Oliveira é pois absoluta; o que é bom que fique assente desde o princípio deste artigo. Como, de resto, onde elogiarmos diremos porque elogiamos, e onde reprovamos diremos porque reprovamos; como, elogiando ou reprovando, transcreveremos ou referiremos à poesia, trecho ou verso, quem ler não lerá sem poder entender, quem duvidar não ficará sem elementos para confirmação.
Incipiam…
II.
O sr. António Correia de Oliveira é um poeta essencialmente português. Vejamos como e até que ponto.
De Oliveira não reproduz completamente o carácter português[2]; reproduz apenas uma parte, e essa a mais característica. Mas a maneira como a reproduz é peculiar.
A parte triste, sentimental, sonhadora do carácter português é reproduzida pelo sr. António Correia de Oliveira e manifestada nas suas poesias. A outra parte do carácter português – a que se prende ao chiste, à pilheria – faz-lhe absoluta falta. Para reproduzir completamente ou aproximadamente o carácter português em si, para o reflectir nas suas modalidades era preciso que o sr. António Correia de Oliveira
[60r]
fosse também dotado do humorismo lusitano, que não analisaremos agora, pois para o caso não importa.
O sr. Correia de Oliveira é um poeta sempre triste ou sempre sonhador. Alegre nunca é, nem pretende ser. Às vezes pretende ser gracioso; se é gracioso imaginativamente, sonhadoramente sai-se da tentativa bastas vezes mal, bastas vezes bem; se gracioso humoristicamente, risonhamente, falha sempre. Leiam as suas obras; não se pode citar precisamente.
Que consequências seguem desta falta de humorismo? É preciso para isso analisarmos um tanto o |carácter| do humorismo, do chiste, do instinto do ridículo.
As modalidades do humorismo, baseadas sobre as modalidades da percepção do ridículo ou, mais radicalmente, do incongruente, mostram, por ser essa a sua essência, a sua natureza crítica. A faculdade de rir é essencialmente uma faculdade da crítica. Rudimentar crítica decerto, mas crítica, indubitavelmente.
A percepção do ridículo é para o bom-senso (que é a inteligência vulgar) o que para a inteligência mais elevada é o sentimento crítico. O “bom-senso” acha “ridículo” ou “desproporcionado”.
[60v]
Parece-nos ter tornado evidente que a percepção do ridículo, do incongruente representa o lado crítico do “bom-senso” popular.
Ora, sendo o sr. António Correia de Oliveira um espírito essencialmente português, sendo a sua feição de carácter {…} lusitana, se lhe falta o humorismo (como lhe falta) falta-lhe, ipso facto, o espírito crítico.
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Faltando-lhe por completo a alegria portuguesa, (o que há de impulsivo no espírito lusitano) estará o sr. António Correia de Oliveira destinado a ser um poeta místico, pouco sensual, pouco equilibrado no seu misticismo, sem inibição nele, e na sua tristeza. Com efeito assim é. Quanto mais místico se torna mais disparates escreve.
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Essa poesia “Miserere” ou “Raiz” têm {…} esplendidas, têm grandes falhas, mas não as criticaremos pois exprimindo, como exprimem, uma dor tão sincera, um sofrimento tão íntimo, não era sem {…} que as poderíamos fazer objecto de uma crítica fria e analítica, de mais a mais que aborda outras poesias, menos pessoais, com os mesmos[3] defeitos e com as mesmas belezas.[4]
[1] do /no\
[2] português /lusitano\
[3] mesmos /idênticos\
[4] mesmas belezas /belezas idênticas\