Identificação
[BNP/E3, 14C – 19-21]
Na sua carta à Renascença Portuguesa, que o Diário de Notícias publicou, queixa-se Gomes Leal de não terem as suas obras mais do que o êxito de montra e estante herdada, de existirem apenas como lombadas na atenção dos leitores contemporâneos.
Sem prejuízo do respeito devido e tido ao Poeta, permita-se-nos que apontemos não navegar com lógica pela popa a queixa conforme se formulou.
Gomes Leal não se adaptou ao nosso meio actual; não tem por isso cor de justiça e dor da sua referência a haverem esquecido as suas obras. A outros, mais novos do que ele, e de outra loja de poemas, o mesmo, pela mesma justificada razão, encontra-se acontecendo.
Já Gomes Leal não era novo quando o movimento literário contemporâneo se deu a si próprio à luz, e a sua primeira obra marcante e ante-simbólica foi, como se sabe, o Nada do sr. Júlio Dantas. Esta grande corrente literária e artística, desenvolvendo-se, veio a produzir, entre outras coisas de igual valor, no campo poético a obra recente e tão pedagógica do sr. Lopes-Vieira,
[20r]
e no campo dramático peças como O Reposteiro Verde, não omitindo que no campo musical nela se acaba de integrar, com o merecido êxito, o sr. Luís de Freitas Branco. O sucesso que têm tido as obras destes autores, o facto de eles ocuparem hoje o primeiro plano da atenção pública, provam bem que (a não ser que o nosso público seja parvo) a época neles encontra os seus representantes naturais.
Gomes Leal será o primeiro a confessar que, nem em género nem em qualidade, se assemelha a sua obra à obra desses.
Depois, a arte moderna vai buscar à ciência e à vida de sociedade processos e ingressos; e a esses não se dedicou o Poeta. Procurou Gomes Leal empenhos para a glória? Que salões recitatórios frequentou, em que cafés acampou azedume e blague? Curou de elogiar para ser elogiado?
Nem esboçou coterie, e queixa-se!
Foi de viagem ao Brasil ser poeta lá? Ele até caiu em aderir sinceramente ao catolicismo de hoje!
E não é só isso, não é só isso… Os artistas modernos compreen-
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dem que a arte abrange toda a vida e fazem por isso o alfaiate, o chapeleiro e o camiseiro colaborar na sua ascensão para o que ficam sendo. Há grandes poetas modernos cujo corte de verso não é, em análise última, senão um corte de fato; músicas que são uma cabeleira; prosadores que devem ao monóculo o perfume exterior da sua prosa.
Hesitará Gomes Leal em se confessar estrangeiro neste novo modo de ser artista?
E quando a isto se acrescenta que o Poeta de quem falamos tem descurado inteiramente aquele acompanhamento de engenharia social que permite, por exemplo, fazer ponte de Gil Vicente e da pedagogia, e estrada da degenerescência da Casa de Braga, e que é hoje tão importante, entre mais, para pedestal a glória poética, ele próprio ansiará, cremos, por ser qualquer impossível coisa antes de o primeiro em confessar injusta, efectivamente, a sua queixa quanto ao esquecimento da sua obra.
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[1] foram só do artista
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[2] [14C – 21v]
Ó naus antigas como num sonho morto / Íbis do
Além-além, / Qual de chegando lá ao
Porto / Que nenhuma nau tem?
Manhã |clara| ou crepúsculo medonho /
Da tempestade a vir / Pelo mar íntimo
que tenho em sonho / |Verso| † é sorrir/
É sorrir com lábios quando não
Sem sorrir perdendo / Surgias pela
minha alma da ilusão, / Ó nau,
E ó natureza cujo vulto na manhã me espera
Não que não colha mais / E lutareis
{…} † / Como caminhareis
Que falareis de gentes e países
Que são um sonho real / Ide através de naus
De haver felizes / {…}
Classificação
Dados Físicos
Dados de produção
Dados de conservação
Palavras chave
Documentação Associada
Publicação integral: Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 164-165; 444-445.