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Fernando Pessoa
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BNP/E3, 14B – 51-52
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Camões, e a Superstição Camoniana.
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
Camões, e a Superstição Camoniana.
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 14B – 51-52]

 

Camões, e a Superstição Camoniana.

 

I.

A opinião literária indigna, activa ou passiva, escrita ou dita, crítica ou acrítica, é o que se chama unânime em aureolar a figura de Camões com um halo de glória cuja luz o prisma da análise permite ver como decomponível em não sete, mas três cores de |opinião|. – A primeira é que Luís de Camões é um poeta conscientemente nacional, um poeta portuguesíssimo, “fiel intérprete” do espírito da nossa raça (aventureiro, cavalheiroso, etc.) e digno fixador em verso dos feitos de armas e de civilização dos nossos grandes antepassados[1] das descobertas e das conquistas. – A segunda é que Luís de Camões é um grande poeta épico e um grande poeta lírico, e que é também e |por isso|, o nosso maior poeta até hoje; sendo mesmo dificilmente concebível que na nossa (geralmente “depauperada”, “definhada” “decadente”) raça outro maior, ou igual, ou aproximado surja[2]. – E a terceira é, |segundo aquela vox elegiastica que não poupa os absurdos|, consequentemente, que a obra de Luís de Camões é altamente recomendável (a) como fonte de beleza e “nacionalidade” para estudiosos literatos e poetas, (b) como {…} (c) como trazendo até nós, embalsamada na eternidade do verso[3] a tradição de grandeza, de heroicidade, de patriotismo {…} – trazendo escrita no {…} da sua alma, como o Arco da Rua Augusta, Virtutibus Maiorum ut sit omnibus monumento.

Propomo-nos nestas poucas páginas de |empacotado| raciocínio, contestar, de leste a oeste, estas implícitas ou cientes posições da crítica, com a excepção da nossa, a

 

[51v]

 

catalogada[4] (c) na classificação analítica que preliminarmente houvermos de deixar feita para bússola e guia do raciocínio.

Antes de pormos pé definitivamente no firme terreno da análise, é bom notar, com o pensamento na verdade, que algumas variantes põe a crítica nacional às 3 opiniões que de início constatámos como suas. Há quem, por exemplo, sem deixar de ter Camões como poeta plenamente nacional, o considera, ainda assim, sob o ponto de vista, restrito e puro, da “nacionalidade” menos português que Gil Vicente ou Bernardim Ribeiro. É uma opinião ao mesmo tempo certa e errónea, consoante infra se verá {…} Há outros que sem num centésimo de ápice desceram Camões[5] do pedestal da grandeza, o dão, contudo, como maior poeta lírico do que épico – o que adiante se analisará mas tem naturalmente pouca importância dado que ninguém em Portugal, e pouquíssima gente crítica no estrangeiro[6] tem a noção do que seja poesia épica. Sirva de exemplo aquele disparate do sr. Émile Faguet, que acaba por concluir, num estudo sobre Victor Hugo, que este poeta era épico, só porque – a análise constata – ele tem todos os acessórios que a poesia épica tem; e, de outra amostra, típica da mesma imprecisão do pensamento, num artigo dum Qualquer, inglês, que chamara a Verhaeren “poeta épico” só porque Verhaeren é enérgico e violento – por-de-nome este que traria, de ser adoptado, desastrosas comparações, com Camões, do nosso actual e poeta João de Barros.

 

Feitas estas circum-considerações, não só por lealdade para com a excepção entre a gente crítica no {…}, mas também para provar que as três posições por nós feitas tomar à opinião nacional nada sofrem com estas {…}, desçamos, ungidos e limpos, à arena desta discussão.[7]

 

[52r]

 

II

 

Para vermos o quale e o quantum de nacionalidade portuguesa que a decência lógica pode conceder ao nosso grande poeta, importa retrogradar até onde se possa ter ponto axiomático, partindo, nesse recuo lógico, do termo nacionalidade. O que é um poeta nacional – eis o problema primeiro. Quantos géneros e modos de poetas nacionais há? – eis o problema que se segue. Há graus e valores relativos nestes géneros, qua[8] géneros, e se os há quais são, e porque o são – eis o problema final.

Um poeta nacional, evidentemente, é um poeta que interpreta e traduz a alma da nação a que pertence manifestando-a como tal em oposição a tal e tal outra. Mas há alma de nação? essa alma pode-se traduzir para arte? e como se pode traduzir? Que haja uma alma nacional é axioma, e quase que não axioma, da sociologia. Porque a própria noção[9] de nação, a própria existência de uma nação pressupõe uma homogeneidade, e essa homogeneidade psíquica (seja ela interpretada como tendo origem na raça, no clima ou em qualquer causa-base) constitui a alma nacional, base de um sentimento colectivo. Porque, mesmo que uma nação se constituísse como uma sociedade comercial, para interesse dos |constituintes|, ainda assim esse interesse comum implicaria uma base psíquica, dado que uma nação se não constitui por acto de vontade e contracto assignado no notário, como uma sociedade comercial, mas pede fenómenos de inconsciente aprovação das suas células-individuais[10]. Mesmo no caso de nações manifestamente heterogéneas, ou essa heterogeneidade é de mútuo consenso das soberanias competentes, causada por exemplo por |passageiras| ou duvidosas causas políticas, e, nesse caso, a criada comunidade de interesses cria uma comunidade de {…}, o que redunda na força artificial de uma nação, mas de uma nação, e a comum alma artificial que artificial prova por excepção, a regra; ou essa nação heterogénea o é por domínio de uma parte {…}

Podemos pois partir, minimamente axiomando, desta |constatação| que há almas nacionais. Passemos a ver se uma alma nacional se pode traduzir por[11] arte. Ora a arte, em sua origem, é ou um fenómeno colectivo, ou um fenómeno individual. Se é um fenómeno colectivo, vem directamente da alma nacional, e interpreta-a portanto, valendo tão caracteristicamente como os costumes, as festas, os vestuários. Por ser

 

[52v]

 

arte é individual, o indivíduo artístico tem um temperamento, donde, traindo-o em essência e {…}, a sua arte brota; ora esse temperamento deve-o o artista, primeiro à hereditariedade, segundo a influências do meio. A hereditariedade grava na sua alma o espírito da sua raça, através de gerações num meio reforçadamente o mesmo; e o meio – como, a não ser por excepção, vive no meio onde nasceu ou, em meio alheio, entre gente vinda do meio onde nasceu – intensifica, no caso, mesmo, de viver em meio diverso, ou esse meio altera e modifica apenas a periferia da sua alma, e nesse caso alma continua (Quando o arbusto se fossiliza fica sendo pedra, não arbusto.) sendo, essencialmente, nacional, ou lhe subverte completamente (raríssimo, senão impossível fenómeno) o temperamento todo – e nesse caso o indivíduo passa a pertencer à outra nacionalidade.

 

Como se pode amostrar em arte a alma nacional? Visto que realmente, constatadamente, em arte se pode amostrar, é segundo o que é a arte que ela se pode amostrar. Assim, em quantos sejam os elementos numa obra de arte descrimináveis, em tantos se pode amostrar a alma nacional. Ora os elementos constitutivos da obra de arte são três – o assunto, o modo como o assunto é concebido, e a forma que essa concepção |re|veste.[12] Por assunto entende-se o assunto-em-si, e por assunto-em-si entende-se o assunto considerado artisticamente como o assunto artístico. O assunto do Antony and Cleopatra não é, por exemplo, um texto de história romana, mas um caso de amor. O assunto da Madame Bovary não é a vida de província, como o subtítulo mal indica; mas o caso de uma alma padecendo da doença romântica.

      

 

 

[1] antepassados /maiores\

[2] surja /ouse pensar em surgir\

[3] do verso /da arte\

[4] catalogada /etiquetada\

[5] /o\ desceram Camões

[6] e pouquíssima gente crítica no estrangeiro /- como aliás quase ninguém –\

[7] Augustine Augustine

Augustine

Augustine Augustine

Augustine Augustine

Augustine

Augustine

[8] qua /a\ /no que\

[9] noção /ideia\

[10] células-individuais /componentes-individuais\

[11] traduzir por /interpretar na\

[12] a forma que essa concepção |re|veste. /[como essa concepção é conciliada, isto é, a forma exterior da obra de arte].\

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3154

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
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Dedicatário
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Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 86-88.
Exposições
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