[BNP/E3, 14A – 28-36]
Nasce o ideal do nosso conhecimento da imperfeição da vida. Conforme o elemento da vida, em o qual deparemos a imperfeição dela, formaremos, por oposição a ele, nosso ideal de perfeição. São tantos esses ideais, em sua particularidade, quantos os homens que os têm; em sua universalidade, porém, demonstravelmente se reduzem a três.
Podemos ter qualquer coisa por imperfeita só por ela ser imperfeita: é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, per contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização senão na essência, relativa ou absoluta dela. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência da coisa que temos por imperfeita e a essência do que consideramos[1] perfeição – quantitativa como se disséssemos da noite, referindo-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo exemplo, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, |tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que devera ser para ser vida.| Diremos, assim, que todo corpo é imperfeito porque não é perfeito como o corpo que é; que toda existência é imperfeita porque, tendo por essência a duração, não dura sempre; que todo prazer é imperfeito porque o envelhece o tédio, a que por finalidade busca furtar-se. Quem sente desta maneira a imperfeição da vida, quem assim a confere com ela-mes-
[29r]
ma, culpando-a só de infiel à sua própria natureza, força é que forme como ideal um conceito de perfeição que se derive da mesma vida. Em este ideal a vida perfeita será tão-somente a perfeição da vida. Este ideal de perfeição é o ideal helénico, ou o que podemos assim chamar, pois que foram os gregos antigos quem mais distintivamente o teve, quem em verdade o formou, de quem, por certo, ele foi herdado pelas civilizações que se lhes seguiram.
Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita[2] por uma deficiência quantitativa de sua essência, isto é, |por ela ser uma manifestação essencialmente inferior de um princípio só superior quando fora, ou liberto, dela|. Em este critério o corpo é imperfeito, não por ser imperfeito, senão porque é só corpo; a vida é imperfeita, não por não durar sempre, senão porque só dura; o prazer é imperfeito, não porque se não satisfaça, senão porque busca só satisfazer-se. Quem sente assim a imperfeição da vida vê fora dela, porém não separado dela, o princípio de perfeição. Ao corpo oporá a alma, criada como ele, porém perfectível; à vida que dura a vida imortal, dada como ela, porém perfeita; ao prazer pessoal o prazer impessoal, em que nos não aumentamos mas diminuímos, e cuja forma suprema é o aunarmo-nos com Deus, nossa essência ou nosso criador. É esta a forma cristã deste ideal, a que poderemos aliás chamar cristão, não só porque é o cristismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós.
Pelo último de tais critérios teremos a vida por imperfeita[3] por uma deficiência qualitativa de sua essência, isto é, por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição. Quer isto dizer que julgaremos não-existente, porque a não-existência, sendo a negação absoluta, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por ilusória; não já por imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita; não já por imperfeita, como para os cristãos, por ser inferiormente “vida”; senão por imperfeita por não existir, por ser absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. Quem sente assim a imperfeição da vida vê fora dela, e separado dela, o princípio de perfeição. É deste conceito que nasce aquela forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida do budismo, embora suas manifestações houvessem aparecido na Índia muito antes de aquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de todas as confissões. Como, porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente apareceram, poderemos ser imprecisos, porém não seremos inexactos, se lhe dermos, por conveniência, o nome de ideal índio.
[30r]
Toda a vida é essencialmente acção; todo ideal, portanto, como é parte da vida, tende essencialmente para objectivar-se, por subjectivo que seja, por negativa que seja a acção em que naturalmente se realiza. O grau de realização objectiva de um ideal variará não só com a intensidade com que é sentido, senão também com a índole dinâmica de quem o possui – ocupado um extremo pelo estado paroxístico do anormal excitado, o outro pelo estado abúlico do anormal deprimido. Esta diferença de índoles, porém, por si mesma determina o aspecto teórico, mais ou menos activo, mais ou menos contemplativo do ideal sentido. E, como os tipos psíquicos empiricamente se dividem em intelectuais, emotivos, e activos, a aplicação de um ideal se divide também empiricamente em intelectual, emotiva, activa. A classificação, verificada na vida, que não oferece senão tipos mistos, é necessariamente errónea, pois que classificar é errar; não compreenderemos a vida, porém, nem nela nos orientaremos, se não nos dispusermos a formar, em nossa teoria da prática, uma média entre a objectividade concreta das coisas e a objectividade abstracta da razão.
Esta tripartição dos tipos psíquicos aplica-se tanto aos ideais em si, que são fenómenos do espírito, quanto aos homens em cujo espírito esses ideais têm vida. Qualquer ideal é, em sua forma intelectual, metafísico e estético, em sua forma emotiva, moral e religioso; em sua forma activa, social e político. Como porém nosso fito nem era estudar os ideais em si, nem é agora estudar, no mesmo ideal helénico, senão sua forma emotiva ou artística, ao estudo desta nos limitaremos. E, fiéis a nossa tripartição original, que percorre, de divisão em subdivisão, todo o esquema abstracto da realidade, perguntaremos: qual a forma intelectual do ideal artístico grego, qual a forma emotiva, qual a forma activa?
[31r]
Um ideal que se deriva da mesma vida vive em nós por uma, mais particularmente, de três espécies de sentimento – o sentimento directo da vida como fundamento desse ideal, digna por isso da nossa crença e do nosso amor; o sentimento indirecto da vida como essencialmente, e em seu conjunto, falha a esse ideal, que nela mesma se forma; o sentimento da vida como necessária, porém diversamente, falha a esse ideal, aproximando-se ou afastando-se diversamente em seus elementos daquilo a que não atinge. De estes três sentimentos, que a origem liga e a direcção separa, se derivam três espécies distintas de sentimento estético – a primeira emotiva, porque incrítica; a segunda intelectual, porque crítica; a terceira activa, porque nem crítica nem incrítica, como o é a acção, substância da imperfeita vida.
O esteta heleno emotivo – Homero e os líricos, por exemplo – crê como religiosamente na vida, fundamento de seu ideal; quer por isso aumentá-la, dar-lhe mais vida que ela mesma tem. Objectiva pois em obras de arte o seu sentimento estético, porque assim aumenta na vida a beleza que nela ama, e que só desejara maior e mais perfeita. A esta forma, a emotiva, do ideal estético grego convém portanto particularmente a designação de ideal artístico. Pela mesma natureza de seu ideal distintivo, é a civilização grega essencialmente a civilização artística. Se fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objectiva, beleza acrescentada à que há no mundo, há mister, para que essa actividade lembre e preocupe, que haja um critério objectivo de beleza ou de perfeição. Ora, dos três critérios fundamentais de perfeição, só o grego é substancialmente objectivo. (Segue: Que impulso ideal etc.)
Que impulso ideal pode ter para criar obras de arte, formas que pertencem ao mundo e à vida, quem, como cristão, tem o mundo e a vida por vis e passageiros, quem, como o místico da Índia, tem toda a Aparência, corpo e alma, por ilusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira? Se a criação artística não procedesse de um instinto irreprimível nas comunidades civilizadas, isto é, de a civilização ser essencialmente aquilo que a Grécia mais perfeitamente foi, nunca teria havido arte índia, nem arte cristã. E a arte cristã ter-se-ia, por certo, aproximado mais da imperfeição estrutural e formal da arte índia, se não fosse que o helenismo é um elemento componente do cristismo, e que a arte dos povos cristãos, tendo a dos gregos por exemplar, se guia, em suas manifestações superiores, pelos princípios postos como fundamentais no preceito e no exemplo dos clássicos.
[32r]
Quais são, perguntemo-lo agora, os sinais distintivos do esteta, quer na vida, quer na arte, quando a faça?
Wilde é o exemplo único, ainda que logicamente desolador, de esse tipo intermédio, participa por igual do esteta de vida e do esteta de cultura.
António Botto é um tipo extremo, e por isso comum, do esteta de gosto ou de vida. A sua ideação sempre é, não confusa, senão nula; a sua masculinidade produz narcisismo, mas um narcisismo físico, curioso porque extremo, exactamente por ser físico – o que o modo da cultura determina; o seu hedonismo condu-lo ao panegirismo artístico |*do mesmo contrário, encarado passivamente|, o que de uma verdade era literatura, mesmo do género {…}
[32ar]
O esteta da cultura aproxima-se semelhantemente do tipo intelectual; o de gosto do tipo emotivo. Se fazem arte, o primeiro, fá-la antes crítica que {…}; o segundo antes {…} que crítica.
1) Ausência do conceito de universo
a) cultura: cepticismo |hedonista|.
b) vida: ametafísica.
2) Hedonismo
a) prazer como repouso – esteta |*simultaneamente sem metafísica, hedonista curioso|
b) prazer como {…} – esteta |*† a socialidade|
3) {…}
a) humanismo | um selectivo sem escolha
b) narcisismo| a cultura impessoaliza.
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(1) Ametafisismo
(2) Asocialidade
(3) Hedonismo – isto a tese de que o prazer é o fim moral da vida ou porque concebemos a moral como essa tendo, assim, um senso moral; ou porque não concebemos moral nenhuma, e o fazemos ocupar portanto respectivamente o seu lugar. Para que o prazer seja concebido como moral é forçoso pois que o consideremos ou como verdadeiro fim, ou como único fim onde não pode haver nenhum.
[32v]
O esteta heleno intelectual – os dramaturgos e os metafísicos, por exemplo – faz arte ou para viver criticamente a imperfeição da vida, ou para substituir, na vida, pela arte, fictiva ou especulativa, essa mesma imperfeição. A obra de arte nasce, para este, não já do desejo de acrescentar beleza à vida, senão do de acrescentar-lhe compreensão; não podendo aperfeiçoá-la em ela, deseja ele, ao menos, aperfeiçoar em si a consciência dela. A esta forma, a intelectual, do ideal estético grego convém particularmente a designação de ideal crítico. É a ela que nossos tempos, por instinto, mais se têm esforçado por seguir; o que provém não só da feição particular de nossa época, forçada a pensar pela ruína das crenças religiosas tradicionais, senão também de que é intelectual, que não emotiva ou activamente, que procedemos da civilização grega. Ora o ideal, que chamámos crítico, é a subespécie intelectual da espécie já intelectual do ideal dos gregos, ideal este, ainda, genericamente intelectual; porque, se o ideal helénico é distintivamente intelectual, sendo que são manifestações do intelecto tanto a arte como a mesma objectividade.
[33r]
O esteta heleno activo – era-o todo grego inteligente que não fosse expressamente artista – tem por única arte o não exercitar nenhuma. Não há paradoxo, intencional ou casual, em chamar-lhe activo: é activo porque nele a arte é acção, vida, que não expressão, interpretação da vida. Faz da vida a sua arte, e essencialmente vive e age o que os artistas essencialmente pensam ou sentem. É esteticamente, que não artisticamente, que é activo. Como, por sua índole, vive a vida mais que a pensa ou sente, não tem do conjunto dela uma noção orgânica, nem emotiva como a tem o esteta artístico, nem intelectual como a tem o esteta crítico. A emoção, como é individual e profunda, reduz o exterior à unidade, aparente que seja, do indivíduo que o sente. O intelecto, como é abstracto, atende, no exterior, menos aos seres diversos que o compõem que às relações abstractas entre eles, e assim necessariamente, e com maior ou menor consciência, reduz o exterior à unidade da relação pura. A acção, per contra, como é solicitada pelo exterior, é necessariamente dispersa como ele. Ora só um conceito da vida como conjunto pode determinar legitimamente a criação artística, que deveras o seja. Toda a expressão artística não é mais, no fundo, que a expressão translata de um conceito do universo, presente ou não à consciência metafísica do artista; e um conceito do universo não é senão um conceito da vida como conjunto. Por isto o esteta activo, sendo que é activo, não cria naturalmente arte. A beleza, que ama, busca-a na vida e na arte dos outros; o aperfeiçoamento, que nela busca, é só o das suas impressões dela; a compreensão, que dela quer, é só o espectáculo da compreensão alheia. A este ideal, assim restritamente vital, cabe por certo a designação particular e distintiva de ideal estético, por isso que não é mais nada. Mais razão há para se lhe dar esta designação quando se repara que a preocupação da beleza, como é activa no esteta puro, e só emotiva ou intelectual nos outros dois, é naquele mais intensamente constante. Com efeito, o puro esteta exige da arte e da vida mais beleza, e mais constante beleza, que o artista, emotivo ou intelectual, cuja visão da beleza se gasta na obra da própria criação. É por isto que tanto espírito clara ou obscuramente estético sofre ordinariamente uma desilusão no conhecimento pessoal de grandes artistas; espera encontrar neles exemplares vivos do amor da beleza que criam, e não encontra, as mais das vezes, senão homens simples ou incolores, quando não grosseiros e sórdidos. Quem tiver feito esta análise, que fizemos, não pasmará, como tanto ingénuo, do Shakespeare tradicional, burguês e agiota no mesmo momento em que escrevia A Tormenta. É que os artistas vivem na arte, onde o queimam, o instinto de beleza que aos estetas puros, que não são artistas, não é dado viver senão na vida.
O ideal estético é a forma ínfima do ideal que chamámos grego; pois que, valendo qualquer ideal pelos seus resultados práticos e sociais, os deste, que é artisticamente incriativo, são directamente nulos. Tem valia social o ideal estético só quando, como na Hélade, é geral e distintivo de um povo, porque assim alguma coisa cria: cria uma atmosfera social de preocupação da beleza, em que os criadores não só haurirão o estímulo para crear, mas receberão também, desde a mesma infância, aquela educação estética de que nenhum pode prescindir.
[34r]
É evidente, desde logo, que há dois tipos naturais de puro esteta – o que por índole busca a beleza antes na vida que na arte, e o que por natureza a busca antes na arte que na vida. Chamaremos os primeiros estetas de gosto, os segundos estetas de cultura. Os estetas de gosto são mais numerosos, nem é difícil encontrar exemplares nas classes superiores de qualquer sociedade civilizada; os estetas de cultura são mais raros, tanto porque a cultura é mais rara que o simples gosto, como porque não é vulgar a índole que deveras se estetiza por ela.
Se, porém, o esteta, propriamente tal, é essencialmente incriativo, por que razão há (como veremos) estetas, de gosto e de cultura, que fazem arte? A razão está na intensidade, peculiar a estes, de seu sentimento estético. Todo sentimento anormalmente intenso busca, por isso que o é, uma satisfação anormal. Uma exacerbação do gosto, natural e cultivado, não se sente caber na função passiva própria do mesmo gosto. Transborda para a criação artística, que lhe não é própria. No esteta de simples gosto isto dá-se pela intensidade natural de seu sentimento estético; no de cultura colabora no resultado a solicitação cultural, a acumulação de ideias e de impressões, vindas da leitura e da observação, que mais forçam à expressão artística. Factores de outra ordem – o instinto mimético, a vaidade de aparecer e de brilhar, e outros assim – completam em geral, e em ambos os casos, a motivação necessária.
Como é de supor, é para as artes que têm por “matéria” a mesma vida – a dança, o canto, a representação – que mais naturalmente transborda o desvio artístico do esteta. Mas a mesma natureza destas artes, e seu grau, que é o ínfimo, na escala da criação artística, dispensam nele um desvio notável para o exercício, ainda que hábil, de qualquer delas. Quando porém o esteta exercita qualquer das artes superiores, ou concretas, como a pintura, ou abstractas, como a literatura – artes estas que exigem, para seu exercício hábil, uma impulsão artística fundamental – a grandeza do desvio presenta já, para o psicólogo, um carácter patológico. E quanto mais hábil for a realização de tais produtos, quanto de mais perto simulem, pela novidade ou a harmonia, os característicos das veras obras de arte, quanto mais realmente belos fossem – porque, ainda que nunca possam ser grandes ou nobres, podem todavia ter beleza –, tanto maior, tanto mais profundamente orgânico, será o desvio a que é forçoso atribuí-los. É que quanto mais o esteta se aproxima, em suas obras, da natureza do artista, tanto mais se afasta da sua própria natureza.
Como, porém, diferençaremos as obras de arte do esteta e do artista? Como o faremos, sobretudo, quanto a daquele se aproxima da deste, e a simula de perto? Dadas a dificuldade e a imprecisão da crítica estética, de que critério, que não seja subjectivo e portanto arbitrário e nulo, nos abonaremos em essa distinção? Seria difícil, senão impossível, a determinação, se não fosse que um desvio psíquico profundo envolve não só a função especial em que se projecta e define, mas também outras funções da mente, e mormente as superiores, que, como são as últimas, e por isso as menos estáveis, aquisições da evolução humana, são as que a loucura e a degeneração primeiro e certamente ruinam.
[35r]
Isto, sobre ser intuitivo, é um lugar-comum da psiquiatria. Temos pois que determinar quais são, na obra de arte do esteta, os sinais distintivos, primeiro do desvio fundamental que fez o artista, segundo do desvio concomitante das funções superiores de sua mente.
Assim como no invertido sexual notamos a perda das qualidades primárias do próprio sexo, sem a aquisição de mais que as secundárias do sexo oposto, assim também em qualquer outro invertido psíquico – e é-o o esteta que faz arte, porque pratica uma função que é oposta, na espécie, à que lhe é natural–, teremos desde logo por certo que se revelará a perda das qualidades profundas que lhe deveram ser próprias, a aquisição das qualidades superficiais que lho não deveram ser. A função natural do simples gosto, que não é criativo, é a conformação prática com as normas estéticas que outros criaram; a função natural da arte é criar novas, ou renovar as velhas, normas estéticas. O esteta transviado aparecer-nos-á pois em arte sempre com um aspecto inovador, pois que perdeu a passividade e a conformação que são os característicos profundos do gosto; aparecer-nos-á, ao mesmo tempo, não inovando senão na superfície, pois que não pôde adquirir o poder orgânico de inovação ou de renovação, que distingue o verdadeiro artista. Assim o veremos aparecer-nos com inovações de simples singularidade, imitáveis por qualquer porque puramente externas: extravagâncias verbais, por arcaísmo, neologismo ou barbarismo; extravagâncias rítmicas sem correspondência íntima; extravagâncias de desenho, por deformação propositada e insignificativa. Vê-lo-emos também, por assim dizer, objectivar em arte o seu próprio desvio, buscando obter em uma arte efeitos legítimos só em outra, desconhecendo as fronteiras de duas artes próximas, confundindo as funções de duas artes diversas. Se nos valermos só deste critério, corremos, porém, um grande risco de errar; não é fácil, sobretudo na estimação de contemporâneos, onde ordinariamente nos falham a imparcialidade e a perspectiva, determinar, salvo em casos flagrantes, se tal inovação é superficial ou não; se há ou não, em tal caso, uma confusão de géneros artísticos; se o que nos parece um desvio orgânico objectivado não será antes a projecção casual de um desvio episódico, a que até um grande artista pode, por solicitações externas ou errores doutrinários, não saber-se furtar. Há mister, pois, que às regras, que este critério estabelece, juntemos aquelas que nos vai ministrar o critério seguinte. À luz de ambos, conjuntos, poderemos, com alguma segurança, efectuar a nossa distinção.
[35v]
O esteta de cultura propriamente mais com ideias que com coisas {…}
Diferença entre o esteta e o simples homem de gosto.
A “inovação” do esteta de cultura diferente da do esteta de gosto: a “inovação” mais na estranheza dos sentimentos que na das {…} |a intervenção de ideias como única novidade do esquema artístico| – (Shaw etc) sinal do esteta de cultura.
|Shaw – reversão à arte didáctica.|
[36r]
O esteta heleno activo – qualquer grego simplesmente cultivado – tem por única arte o não exercitar nenhuma. Não há paradoxo, intencional ou casual, em chamar-lhe activo: é activo porque nele a arte é acção, vida, que não expressão, interpretação da vida. Faz da vida a sua arte, e essencialmente vive o que os outros essencialmente pensam e sentem. É esteticamente, que não artisticamente, que é activo. Como, por essa sua índole, vive a vida mais que a pensa ou sente, não a sente nem a pensa em conjunto, nem emotivo como o esteta artístico, nem intelectual como o esteta crítico, mas em pormenor, como forçosamente tem que vivê-la quem a vive em acção, que não em emoção ou em pensamento. A emoção, como é individual e individuante, reduz o exterior à unidade do indivíduo que o sente. O intelecto, como é abstracto, dissipa na abstracção, assim unificando-o, a diversidade do concreto. A acção, per contra, como é solicitada pelo exterior, é necessariamente concreta e dispersa como ele. Ora só um conceito da vida em conjunto pode determinar legitimamente a criação artística. Toda expressão artística é, no fundo, a expressão de um conceito do universo, tácito ou expresso no mesmo indivíduo, e, para ele mesmo; e um conceito do universo é essencialmente um conceito do conjunto dele. Por isto o esteta activo, sendo que é activo, não cria arte. A beleza, que ama, busca-a na vida e na arte dos outros; o aperfeiçoamento que nela busca é só o da sua sensação dela; a compreensão, que dela quer, é só o espectáculo da compreensão alheia. A este ideal, assim restritamente vital, cabe por certo a designação particular e distintiva de ideal estético, por isso que não é mais nada. Mais razão há para se lhe dar esta designação quando se repara que a preocupação da beleza, como é activa no esteta puro, e apenas emotiva ou intelectual dos outros dois, é naquele mais intensamente constante. Com efeito, o puro esteta incriativo exige da vida e da arte mais beleza, e mais constante beleza, que o artista emotivo ou intelectual, cuja visão de beleza se gasta no artifício da própria criação. É por esta razão que tanto espírito clara ou obscuramente estético sofre uma desilusão com o conhecimento pessoal de grandes artistas; espera encontrar neles exemplares visíveis do amor da beleza, encontra, as mais das vezes, homens simples, desinteressantes, por vezes sórdidos e grosseiros. É que esses viveram na arte, onde o queimaram, o instinto de beleza que aos estetas menores, que não são artistas, não é dado viver senão na vida.
É evidente, desde logo, que há dois tipos naturais de puro esteta – o que por índole procura a beleza antes na vida que na arte, e o que por natureza a procura antes na arte que na vida. Os primeiros, os estetas de vida, são mais numerosos, nem é difícil encontrar exemplares deles nas classes superiores de qualquer sociedade civilizada; os segundos, os estetas de cultura, como Winckelmann e Pater, são mais raros, tanto porque a cultura é mais rara que o simples gosto, como porque não é vulgar o temperamento que se estetiza por ela.
[36v]
António Botto não é um caso raro porque raro; é um caso raro porque extremo. Isto é o mundo literário ideado da cultura da arte por não ser mais que esteta pensador. O que só aparece nele ainda com tanto fulgor é um caso tão extremo do domínio estético, a criação artística inecessária.
[1] consideramos /reputamos\
[2] imperfeita/(relativa)\
[3] imperfeita /(absoluta)\