[BNP/E3, 14A – 19]
ANTÓNIO BOTTO E O SENTIDO ÍNTIMO DO RITMO
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Acaba de sair a segunda edição, muito aumentada, do livro “Canções” de António Botto. Não vou tomar o lugar do ilustre crítico deste jornal de que tenho a honra de ser colaborador. Portanto não criticarei propriamente esse belo livro. Mal dele falarei, para só tratar, de uma maneira geral, da Grande Reforma provocada pelo admirável poeta que é António Botto na arte suprema do Ritmo.
Antes de mais nada devo dizer que qualquer que seja o “parti pris” contra o poeta pelas suas tendências éticas, todos devem admirar nele o grande Artista. A moralidade ou imoralidade dos seus livros não conta nada para o juízo que se faça da sua Arte. Não é verdade que se trata dum Artista e dum grande Poeta como reconhece o sublime Espírito de Teixeira de Pascoaes nas admiráveis palavras que prefaciam o livro “Canções”? Pois isto basta. Quantas obras de Arte não se teriam de banir se nela sempre se exigisse a mais burguesa moralidade! Esta nada tem que ver com a arte, nem mesmo com a arte religiosa que pode ser bem livre. A moralidade burguesa é para os luteranos. E isto provarei eu nas minhas obras. Mesmo que se discorde dos assuntos escolhidos por António Botto, o que ninguém pode afirmar é que ele não seja o Artista e o Poeta que o quase divino Teixeira de Pascoaes é o primeiro a admirar. Ora é bem melhor atender-se à Arte de António Botto do que às suas imoralidades.
Posto isto, vejamos em que consiste a Grande Reforma a que me referi no princípio deste artigo. Do Ritmo têm cuidado com o maior esmero todas as eras. E dizem que ninguém como os gregos o compreendeu. Ora há um fundo de verdade e um fundo de mentira nessa crença geral sobre o ritmo helénico. Este seria perfeitíssimo e complicadíssimo, se quiserem – o que não creio – mas apenas se exprimia como movimento rítmico exterior. Era do ritmo, considerado empiricamente, que se tratava, ainda que nesse plano empírico ele fosse perfeitíssimo. Uma comparação, bem menos material do que parece à primeira vista, tornará bem claro o meu pensamento.
Não são duma complicação extrema as manifestações de electricidade que nós aproveitamos? e não as dirigimos nós de todos os modos segundo a nossa vontade? Sem dúvida, mas também não há dúvida que estamos ainda muito longe de tomar posse da electricidade na sua natureza essencial. Talvez nisso os povos mais antigos da terra tivessem sido mais felizes do que nós. Hoje aproveitamos e dirigimos as manifestações da electricidade a nosso bel-prazer, mas sem sabermos o que é a electricidade, sem a possuirmos, sem possuirmos o seu significado íntimo, nada sabendo sobre a sua natureza própria. Somos senhores das suas manifestações exteriores mas não propriamente dela, por isso que não sabemos o que seja.