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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 19 - 97
Imagem
Charles Dickens.
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
Charles Dickens.
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[19 – 97]

 

Pickwick

 

Charles Dickens.

 

Mr. Pickwick belongs to the sacred figures of the world’s history. Do not, please, claim that he has never existed: the same thing happens to most of the world’s sacred figures, and they have been living presences to a vast number of consoled wretches. So, if a mystic can claim a personal acquaintance and clear vision of the Christ, a human man can claim personal acquaintance and a clear vision of Mr. Pickwick.

 

Pickwick, Sam Weller, Dick Swiveller – they have been personal acquaintances of our happier hours, irremediably lost through some trick of losing that time does not measure and space does not include. They have lapsed from us in a diviner way than dying, and we keep their memory with us in a better manner than remembering. The human trammels of space and time do not bind them to us, they owe no allegiance to the logic of ages, nor to the laws of living, nor to the appearances of chance. The garden[1] in us, where they live secluded, gathers in flowers[2] of all the things that make mankind copious and pleasant to live with: the hour after dinner when we are all brothers, the winter morning when we all walk out together, the feast-days when the riotous things of our imperfection – biologic truths, political realities, being sincere, striving to know, art for art’s sake – lie on the inexistent other side of the snow-covered hills.

 

To read Dickens is to obtain a mystic vision – but, though he claims so often to be Christian, it has nothing to do with the Christian vision of the world. It is a recasting of the old pagan noise, the old Bacchic joy at the world being ours, though transiently, at the coexistence and fullness of men, at the glad meeting and sad parting of perennial mankind.

 

It is a human world, and so women are of no importance in it, as the old Pagan criterion has it, and has it truly. The women of Dickens are cardboard and sawdust to pack his men to us on the voyage from the space of dream. The joy and zest of life does not include woman and the old Greeks, who created pederasty as an institution of social joy, knew this to the final end.

 

Dickens’ women are dolls, but all women are dolls. As some thinkers upheld it at Nicea (?), women have no souls. Their existence is bi-dimensional to the tri-dimensional psychism of men. Women are merely ornaments to man’s life – of his life as an animal, as enabling him to satisfy an instinct, of his life as a social being, as enabling him to continue the society he lives in and, working for, creates anew, of his life as an intellectual being as a decorative part of the outer world, with landscapes, china, pictures, old furniture, no more living and actual than these.

 

The reality of Dickens is purely masculine and only feminine where it will not live. Who cares for his sentiment that has any care at all for his humour. I need not be told that his sentiment is part of his humour. So may a man’s holiness, as important say, be the less of his mysteries and we adore the mysteries and but the substantial holiness.

 

[97v]

 

He raised caricature to a high art and made unreality a mode of reality. Mr. Pickwick has a more solid density than our acquaintances; he belongs more than the next-door neighbor and is a more living person than dozens, such as the Trinity, |*or the divinity of men, or benefit Progress.|

 

That whole world of Pickwick is a real world in a way that the coarse reality of England can never be. Mr. Perceval was never shot in so real a way as Mr. Pickwick went over the young ladies Seminary wall. Thereby to men unused with such as perennial truths on Sam Weller; and the unworthy poems of Mr. Snodgrass are as hearten gossip on our pleased judging the true worth {…} of his pseudo-real contemporary Tennysson.

What quality of him, surviving in W. W. Jacobs and O. Henry {…}

 

Somewhere surely, when the waking hand shakes our shoulder and the gods themselves their back into a lie, Fate will permit a Paradise for them who have communed a Pickwick, even if not in Christ, and have believed in the true Weller’s, even if not in the three Persons. They will live secluded from the joy of Heaven and the |*bellowing| pangs of Hell, not forgetful of the one-eyed bagman, disdaining not so much as the absent shirt behind Mr. Jingles[3] dirty neck cloth.

 

Mr. Perceval was only shot once. Mr. Pickwick went infinite times over the wall. Everyone that reads Pickwick sees him going over the wall. That is what Dickens found: the sentimental way of going over a wall.

 

The fate of gay things is that they never live: of sad things that they pass also. But the things which live by mere gest of their creator as those attain permanence an attic permanence. A Bacchic permanence, a dyonisiac splendor of consciousness, a trans-substantiation of personality {…}

 

 

[19 – 97]

 

Pickwick

 

Charles Dickens.

 

O Sr. Pickwick pertence às figuras sagradas da história do mundo. Não se alegue, por favor, que ele nunca existiu: o mesmo acontece à maioria das figuras sagradas do mundo e elas têm sido presenças vivas para um vasto número de infelizes consolados. Assim, se um místico pode alegar um conhecimento pessoal e uma visão clara de Cristo, um homem humano pode alegar um conhecimento pessoal e uma visão clara do Sr. Pickwick.

 

Pickwick, Sam Weller, Dick Swiveller – eles têm sido conhecimentos pessoais das nossas horas mais felizes, irremediavelmente perdidas por algum truque de perda que o tempo não mede e o espaço não inclui. Têm-se evadido de nós de um modo mais divino do que a morte e mantemos em nós a sua memória de uma maneira melhor do que a lembrança. Os grilhões humanos do espaço e do tempo não nos prendem a eles, não devem nenhuma lealdade à lógica das épocas, nem às leis da vida, nem às aparências do acaso. O jardim em nós, onde vivem isolados, colhe flores de todas as coisas que tornam a humanidade copiosa e agradável de se conviver: a hora após o jantar em que todos somos irmãos, a manhã de Inverno em que todos passeamos juntos, os dias de festa em que as coisas tumultuadas da nossa imperfeição – verdades biológicas, realidades políticas, sermos sinceros, aspirar a conhecer, a arte pela arte – residem no outro lado inexistente das montanhas cobertas de neve.

 

Ler Dickens é obter uma visão mística – mas, ainda que ele alegue tão frequentemente que é cristão, isso não tem relação com a visão cristã do mundo. É uma reformulação do antigo barulho pagão, a velha alegria báquica de o mundo ser nosso, ainda que transitoriamente, na coexistência e plenitude dos homens, no alegre encontro e triste despedida da perene humanidade.

 

É um mundo humano e assim as mulheres não têm importância nele, tal como o antigo critério pagão o afirma e verdadeiramente o afirma. As mulheres de Dickens são papelão e serradura para empacotar os seus homens na viagem do espaço dos sonhos. A alegria e entusiasmo da vida não inclui a mulher e os antigos gregos, que criaram a pederastia enquanto instituição de alegria social, conheciam isto até ao final.

 

As mulheres de Dickens são bonecas, mas todas as mulheres são bonecas. Tal como alguns pensadores sustentaram em Niceia (?), as mulheres não têm alma. A sua existência é bidimensional para o psiquismo tridimensional dos homens. As mulheres são meros ornamentos à vida do homem – da sua vida enquanto um animal, enquanto permitem que ele satisfaça um instinto, da sua vida enquanto um ser social, enquanto permitem que ele continue a sociedade em que vive e a recria trabalhado para ela, da sua vida enquanto um ser intelectual, enquanto parte decorativa do mundo exterior, com paisagens, porcelana, quadros, mobília velha, algo que não é mais vivo e efectivo do que estas coisas.

 

A realidade para Dickens é puramente masculina e apenas feminina onde não vive. Quem se importa com o seu sentimento, quando se tem, de todo, algum cuidado pelo seu humor. Não é necessário dizer que o seu sentimento é parte do seu humor. Assim poderá a santidade do homem, como é importante dizer, ser o menor dos seus mistérios e adoramos os mistérios e apenas a santidade substancial.

 

[97v]

 

Ele ergueu a caricatura a uma arte elevada e tornou a irrealidade um modo de realidade. O Sr. Pickwick tem uma densidade mais sólida do que os nossos conhecimentos; ele pertence mais do que o vizinho da porta ao lado e é uma pessoa mais viva do que dezenas de pessoas, tal como a Trindade, |*ou da divindade dos homens, ou benefício do Progresso.|

 

Todo o mundo de Pickwick é um mundo real de um modo que a realidade grosseira da Inglaterra nunca poderá ser. O Sr. Perceval nunca foi baleado de um modo tão real quanto o Sr. Pickwick passou pela parede do Seminário das jovens mulheres. Por conseguinte, para homens desacostumados com tais verdades eternas sobre Sam Weller; e os indecorosos poemas do Sr. Snodgrass são, enquanto animado mexerico, no nosso agradável juízo o verdadeiro valor {…} do seu pseudo-real contemporâneo Tennysson.

Que qualidade dele, sobrevivendo nos W. W. Jacobs e O. Henry {…}

 

Certamente que em algum lugar, quando a mão que desperta sacode o nosso ombro e os próprios deuses voltam as suas costas para uma mentira, o Destino concederá um Paraíso àqueles que comungaram com um Pickwick, mesmo que não em Cristo, e que tenham acreditado na verdade de Weller, mesmo que não nas três Pessoas. Eles viverão afastados da alegria do Céu e das |*retumbantes| aflições do Inferno, sem esquecer do caixeiro-viajante de um só olho, sem desdenhar tanto quando a camisa ausente da parte de trás do pano do pescoço sujo do Sr. Jingles.

 

O Sr. Perceval foi morto apenas uma vez. O Sr. Pickwick foi infinitas vezes para o muro. Todas as pessoas que lêem Pickwick, vêem-no ir para ir para o muro. Foi isso que Dickens descobriu: um modo sentimental de ir para um muro.

 

O destino das coisas alegres é que nunca vivem: das coisas tristes que também passam. Mas as coisas que vivem pelo mero gesto do seu criador, essas atingem uma a permanência, uma permanência ática. Uma permanência báquica, um esplendor dionisíaco da consciência, uma transubstanciação da personalidade {…}  

  

 

[1] garden /|*dives|\

[2] where they live secluded, gathers in flowers /where we were all children ever by virtue\

[3] Mr. Jingles /Jingel’s\

Notas de edição

Agradeço ao investigador José Barreto que me auxiliou a rever este documento.

Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2780

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

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Idioma
Inglês

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
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Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Publicação parcial: Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 326-328.
Publicação integral: Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 106-107.
Exposições
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