[BNP/E3, 18 – 58]
Ensaios.
Poesia e Prosa.
A arte, que se faz com a ideia, e portanto com a palavra, tem duas formas – a poesia e a prosa. Visto que ambas elas se formam de palavras, não há entre elas diferença substancial. A diferença que há é acidental, e, sendo acidental, tem que derivar-se daquilo que é acidental, ou exterior, na palavra. O que há de exterior na palavra é o som; o que há, pois, de exterior numa série de palavras é o ritmo.
Poesia e prosa não se distinguem, pois, senão pelo ritmo. O ritmo corresponde, é certo, a um movimento íntimo da alma; mas, como esse movimento íntimo se manifesta no ritmo escusamos de atender a ele, ou a qual ele seja, no estudo do ritmo, e no da diferença entre a poesia e a prosa.
O ritmo consiste numa graduação de sons e de faltas de som, como o mundo na graduação do ser e do não-ser. Quer isto dizer que o ritmo consiste numa distribuição de palavras, que são sons, e de pausas, que são faltas de som. Às palavras, como existem, compete um ritmo de variação, dependente da extensão das palavras, da sua acentuação, da sua qualidade e quantidade silábica, e também do seu sentido, quer próprio, quer dependente das outras palavras, que lhes são contexto. Às pausas, como não existem, compete tão-somente um ritmo de extensão; isto é, a pausa, como não é mais que a falta de uma coisa (o som) não tem variante senão a sua duração. A pausa é mais longa ou mais breve; só isto.
Na prosa, que é a linguagem falada escrita, estas pausas são dadas por uma coisa a que se chama a pontuação, e a pontuação é determinada exclusivamente pelo sentido. Da pausa grande do parágrafo à pausa menor do período, à menor ainda do subperíodo (dada pelo ponto e vírgula, os dois pontos, ou o traço) ou à mínima, da vírgula, toda a pausa da prosa se deriva da significação do que se diz. O mais que nos é permitido variar, por arbítrio nosso, na pontuação, é num estabelecimento um pouco carregado de vírgulas, numa abertura de parágrafos onde poderia havê-lo só de períodos, ou em outras coisas assim. Mas, em todos os casos, essas pontuações não deverão senão tender para acentuar o sentido; nunca poderão quebrá-lo ou interrompê-lo, porque a prosa, sendo a linguagem falada escrita, é, por isso mesmo, o reflexo da ideia, para cuja emissão a palavra falada existe.
Se, porém, quisermos acentuar o ritmo para além da ordem lógica, em virtude de em nós a emoção, que produz a entonação (e o canto), predominar sobre a ideia propriamente dita, abriremos pausas artificiais no discurso; e essas pausas são artificiais porque a emoção, quanto à ideia, é externa (visto que não é a ideia), e portanto artificial.
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Como estas pausas artificiais não podem ser designadas por pontuação, pois a pontuação designa as pausas naturais, temos que designá-las por qualquer coisa que, marcando-as acentuadamente, todavia as marca como artificiais. Isto fazemos dispondo o discurso em linhas separadas, sendo a pausa indicada pela passagem de linha. A este género de discurso se chama poesia. A pausa de fim de verso é independente do sentido, e é tão nítida como se ali houvesse pontuação. Erram pois contra toda a substância da poesia os que lêem ou dizem versos, correndo-os de um para outro quando não há pontuação no fim de uma linha. O discurso poético é exposto em linhas precisamente para que se faça uma pausa, artificial embora, onde a linha termina. A poesia é assim a prosa feita música, ou a prosa cantada; o artifício da música é conjugado com a naturalidade da palavra.
Nos princípios da poesia, é o próprio ritmo musical que estabelece estas pausas; a pausa da voz que canta acentua a pausa do fim de verso. Mais tarde, por um processo ainda vagamente musical, que é o quantitativo, dá-se a cada verso um igual valor musical, e a voz conhece por antecipação onde a linha acaba, sendo-lhe dada assim uma guia para a leitura. Mais tarde, dispensa-se essa base musical, mas, para que a guia não falte, estabelece-se um sistema de referências pelo qual se sabe onde termina o verso, e esse sistema é a rima. Mais tarde ainda, fixo já o verso em determinadas medidas, quantitativas pelas sílabas que não pela quantidade, a rima dispensa-se, é o chamado verso branco – o regular. Finalmente, se chega ao justo critério do verso – de que basta marcar pela volta de linha que o discurso está escrito em verso para se dever ler como tal, para efectivamente ser tal.
Assim se chega ao critério moderno do verso, em que não há exigência de quantidade, de sílabas certas, nem de rima. A linha isolada é uma unidade rítmica. A qualidade rítmica depende, como aliás dependeu sempre, do poeta.
Assim, a diferença entre a prosa e o verso, sem desaparecer, longe, até de desaparecer, acentua-se tal qual é, sem mais nada. O verso é a prosa artificial, o discurso disposto musicalmente. Não é outra a diferença entre as duas formas da palavra escrita.