Identificação
[BNP/E3, 18 – 34–35]
Balança de Minerva.
Aferição.
Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse modo imoral e hipócrita de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e àquela espécie de outros a que a nossa inconsciência chama nós-próprios. Por isso, se escrever, no sentido de escrever para dizer qualquer coisa é acto que tem um cunho de mentira e de vício, criticar as coisas escritas não deixa de ter um correspondente aspecto de curiosidade mórbida ou de futilidade perversa. E quando a crítica é escrita também, requinta-se para repugnante a sua imoralidade essencial. Pega-se-lhe a doença do criticado – o facto de existir escrito.
Propriamente, o único crítico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra; porque, ainda que os psiquiatras sejam tão ignorantes e laterais aos assuntos como todos os outros homens daquilo a que eles
[35r]
chamam ciência, têm ainda assim, perante o que vem a ser um caso de doença mental, aquela competência que consiste em nós julgarmos que eles a têm. Nenhum edifício de sabedoria humana pode erguer-se sobre outros alicerces.
Fragmento dactilografado preparatório do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Balança de Minerva – Aferição», in Teatro - Jornal d’Arte, Ano I, nº 1, Lisboa, 22 de Novembro de 1913.