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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 18 – 12–14
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[Sobre arte]
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre arte]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 18 – 15–17]

 

IV.

 

A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte.

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V.

 

Em que se distingue a obra de arte de qualquer obra do esforço humano? Num exemplo simples poderemos vê-lo.

Carta, frase falada, M. Jourdain....

Intenção ou valor notável.

Porém o valor não basta. Ele será nulo, em relação a quem escreveu a carta, ou proferiu a frase, se verificarmos que essa carta foi copiada de outrem, ou que a frase foi reproduzida. Haverá, sim, valor artístico na carta e na frase, porém o artista será aquele de quem a carta é, o que disse a frase.

Uma obra de arte, portanto, é, em sua essência, uma invenção com valor. Se não for invenção, o valor pertencerá a quem inventou; se não tiver valor não será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?

Uma obra que é uma invenção com valor, de que processos intelectuais[1] procede?

Uma invenção é uma ideia nova realizada. Há aqui dois elementos: a ideia, e os meios per que se realize. Em qual dos dois, ou de que modo, reside a essência da ideia nova?

Suponha-se um poema, que penso em escrever. Tenho a ideia; os meios, que são os princípios de metrificação e de disposição do assunto, suponha-se que os tenho, porque os saiba, tendo-os aprendido. Com isto, terei certo que farei um poema de valor, supondo sim que é original a ideia que tenho? Se assim fosse, qualquer homem de cultura escreveria um grande poema. Ciente dos meios, e podendo ter uma ideia original, bastar-lhe-ia realizá-la. O que lhe falta?

Se, havendo na invenção, ideia e meios, e se, supondo-se a posse da ideia e o conhecimento dos meios a empregar, ainda assim se possa dizer que não é certo que a ideia se realize com valor, que elemento especial falta considerar? Este: a ideia original tem que ser tida em todos os seus detalhes, abrangendo o uso dos meios. Isto é o acto de invenção envolve uma fusão do fim e dos meios. Mas a fusão do fim e dos meios é o que, segundo vimos, caracteriza o acto de instinto. A invenção de um valor é portanto um acto de instinto {…}

Provado assim, pelo modo directo, pode isto provar-se também pelo absurdo do contrário. Suponha-se que a invenção é um acto da vontade consciente; como esta se divide na determinação e na inteligência, que aquela emprega, a obra há de provir, ou de uma, ou de outra, ou de ambas juntas. Da intenção já vimos que não vem, e na verdade todos sabemos que a intenção de inventar nunca fez ninguém inventor. Da inteligência não vem, porque o conhecimento dos meios (que é o que a simples inteligência fornece) também não faz inventores, e os que mais conhecem os princípios da poesia, e a história dela não são os maiores poetas. E se não pode vir de uma ou de outra, também não pode provir das duas reunidas.

--- O instinto, porém, não origina. O instinto de andar não descobre novos processos de andar. Há no caso da invenção uma fusão do instinto com a inteligência {…}

 

[16r]

 

Não é difícil encontrar uma explicação científica. Por natureza, a inteligência, embora não crie, constantemente se transforma. Um longo uso da inteligência pela humanidade criou um instinto nessa inteligência, e como a inteligência por natureza transforma, e o instinto por natureza opera, uma fusão dos dois, ou, per outras palavras, um instinto intelectual será uma qualidade do espírito que transforme operando. Mas a transformação reduzida a acto é precisamente a essência da invenção, pois que a invenção é um acto, e um acto que transforma o que há.

A obra de arte, no que invenção de um valor, deriva portanto do que com propriedade se pode chamar um instinto intelectual.

 

VI.

 

Há, porém, invenções de vários géneros, e nem todas são arte. Invenção foi a de Watt, quando descobriu a machina de vapor; invenção a de Descartes, quando uma manhã, na cama, viu de repente a geometria por coordenadas. Ambas são invenções de um valor, de nenhuma delas diremos – salvo em qualquer sentido, que por translato não tem cabimento aqui – que é uma obra de arte. O valor da obra de arte é portanto diferente do daquelas outras. Cumpre que distingamos bem em que difere.

O que é um valor? Como há diferenças de valores, o valor é uma quantidade... É uma quantidade medida per um princípio ou critério qualitativo.

(O instinto artístico serve o fim de individuar a obra)??????

Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade, e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de arte é uma invenção com um valor absoluto.

Como dissemos que a invenção de um valor procede de um instinto intelectual, diremos, da invenção prática, que procede do instinto intelectual da utilidade, da invenção científica, que procede do instinto intelectual da verdade, e assim, da invenção artística, que provém do instinto intelectual absoluto[2].

 

VII.

 

Como, pois, a obra de arte, para que deveras o seja, nem seja apenas o simulacro de uma, tem de provir do instinto; como, porém, esse instinto, como é intelectual, pode ser imitado nas suas operações pela inteligência; como a obra da inteligência não pode ter valor no género a que pertence, porém pode simulá-lo; como, portanto, o que primeiro temos que fazer é distinguir se uma aparente obra de arte pode ter ou não valor, isto é, provém ou não do instinto, temos primeiro que determinar por que processos objectivos se distingue imediatamente uma obra do instinto intelectual de uma composição da inteligência. Para muitos de nós, bastará o gosto, ou senso estético, para o determinar; esse, porém, não é um princípio objectivo, nem podemos cientificamente propor a outrem que aceite o nosso gosto por critério com que ele aprecie.

 

[17r]

 

A inteligência não pode dar-me o desejo de comer; pode porém dar-me o desejo de não comer senão o que me for útil. E quando, em doença, eu não sinta o desejo de comer, vendo, pela inteligência, que devo fazê-lo, para me não desalimentar, guio-me pela utilidade e não pelo simples desejo de comer.

Assim o acto de inteligência, quando colabore nas coisas do instinto, ou se substitua ao instinto, distingue-se por isto – que se guia sempre por uma ideia assessória da ideia central do instinto, nunca pela central, para a qual só o instinto pode guiar.

Nisto, pois, se encontra a distinção entre a inteligência e o instinto: que o instinto, desde que funcione, acerta sempre com a essência do objecto para que tende, sendo que a inteligência não acerta com a essência nunca, ficando sempre nos acessórios.

Entende-se bem que por ideia central de um instinto, se entende aquela que se define pelo próprio fim do instinto.

Assim um produto do instinto difere de um da inteligência em que no primeiro o essencial está com certeza dado, no segundo o essencial está com certeza por dar.

 

VIII.

 

Determinado o processo objectivo, por meio do qual se determine se uma obra é do instinto ou da inteligência, está com isto determinado se essa obra pode ter, ou não, valor, pode valer, ou não, como obra de arte. O ser de instinto, porém, é a condição do valor, não o valor mesmo. Resta, pois, que determinemos em que se diferença, na obra de instinto, o maior do menor; qual o princípio objectivo pelo qual, dada uma obra de instinto, se determina o valor ou força do instinto que realizou tal obra.

Vimos que numa operação do instinto, o objecto se define, relativo a esse instinto per meio de uma ideia geral central, que só o instinto pode dar, assim como, melhor, per meio de outras ideias gerais, acessórias essas, que a inteligência pode simular.

Em que pode residir o valor de um instinto? Em que pode um indivíduo ter um instinto de comer mais perfeito que o de outro indivíduo? Não por certo em comer muito, pois, se o valor é uma quantidade medida qualitativamente, aqui, onde há só quantidade, não há valor. Quantidade medida qualitativamente só pode ser a {…}

 

 

[1] intelectuais /(do espírito)\

[2] absoluto /da intensidade\

Notas de edição

Conforme assinalado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, este fragmento [BNP/E3, 18 – 15-17] corresponde a um “Fragmento do primeiro esboço do ensaio sobre «Octávio» de Vitoriano Braga” (Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, p. 12).

Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2338

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Arte

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 12-17.
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