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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 18 – 12–14
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Introdução à Estética
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
Introdução à Estética
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 18 – 12–14]

 

Introdução à Estética.

 

... Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança, tantos séculos de tantas coisas, que sintam e portanto se exprimam com a limpidez, e a inocência de sentidos, de Safo ou de Anacreonte, nem é legítimo, nem razoável. Não é no conteúdo da sensibilidade que está a arte, ou a falta dela: é no uso que se faz desse conteúdo.

 

... Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal. A matéria da arte, dá-a a sensibilidade, a forma, dirige-a a inteligência. E na forma há, ainda, duas partes a considerar: a forma concreta ou material, que se prende com a matéria mesma da obra, e a forma abstracta ou imaterial, que se prende só com a inteligência e depende de suas leis imutáveis.

 

Três são as leis da forma abstracta, e, como são da forma abstracta, aplicam-se a todas as artes e a todas as formas de cada arte. Abdicar delas é abdicar da mesma arte. Podemos eleger quebrar tais leis; não podemos, porém, elegendo-o, presumir que fazemos arte, pois a arte consiste, mais que em qualquer outra coisa, na obediência a essas leis. As três leis da forma abstracta são: a unidade; a universalidade ou objectividade; e {…}

 

Por unidade se entende que a obra de arte há de produzir uma impressão total definida, e que cada seu elemento deve contribuir para a produção dessa impressão; não havendo nela nem elemento que não sirva para esse fim, nem falta de elemento que possa servir para esse fim. É uma falha artística, por exemplo, a introdução em um poema de um trecho, por belo que seja, que não tenha relação necessária com o conjunto do poema, como o é, mais palpavelmente, a introdução em um drama de uma cena em que, por grande que seja a força ou a graça própria, a acção pára ou não progride, ou, o que é pior, se atrasa.

 

Por universalidade, ou objectividade, se entende que a obra de arte há de ser imediatamente compreensível a quem tenha o nível mental necessário para poder compreendê-la. Quanto mais altamente intelectual for uma obra de arte, maior será, em princípio, a sua universalidade, pois que a inteligência abstracta é a mesma em todos os tempos e em todos os lugares – dada a espécie humana no nível de tê-la –, enquanto a sensibilidade varia de tempo para tempo e de lugar para lugar.

 

[13r]

 

Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impressão ou emoção do artista que a constrói, impressão ou emoção que, como tal, é própria e intransmissível. Se o valor dessa emoção, para quem a sente, é o ser, própria, deve gozar-se simplesmente, e não exprimir-se. Se o valor dela, porém, é mais alguma coisa, {…}

 

Todos nós sentimos a dor e o delírio do Rei Lear de Shakespeare; esse delírio, contudo, é, diagnosticavelmente, o da demência senil, de que não podemos ter experiência, pois quem cai em demência senil nem pode perceber Shakespeare, nem qualquer outra coisa. Porque é, então, que, sendo esse delírio tão caracterizadamente o do demente senil, o sentimos tanto nós, que não temos conhecimento desse delírio? Porque Shakespeare pôs nesse delírio só aquela parte que nele é humano, e afastou a que nele seria, ou particular do indivíduo Lear, ou especial do demente senil. Todo o processo mórbido envolve essencialmente ou um excesso, ou um abatimento, de função; ou uma hipertrofia, ou uma atrofia, de órgão. O desvio, que constitui a doença, está na distância a que fica o excesso, ou o abatimento, do nível da função normal; na dissemelhança que se estabelece entre o órgão hipertrofiado, ou atrofiado, e o órgão são. Assim a doença é, ao mesmo tempo, e no mesmo facto, um excesso ou abatimento do normal, e um desvio (ou diferença) desse normal. Se, apresentando um caso de doença mental, o apresentarmos pelo lado em que é excesso ou abatimento da função normal, com isso mesmo o apresentamos como ligação a essa função, e compreensível para quem a tenha; se, porém, o apresentarmos pelo lado em que é desvio ou diferença, com isso mesmo o apresentamos como desligado ou separado dessa função, e incompreensível, portanto, a quem não esteja no mesmo caso mórbido, o que será pouca gente, senão pouquíssima. As duas maneiras são comparáveis à maneira racional, e à dogmática ou aforística, de apresentar uma conclusão: o raciocinador leva o ouvinte ou lente até a conclusão por um processo gradual, e, ainda que a conclusão seja estranha ou paradoxal, torna-se em certo modo aceitável por se tornar compreensível como se chegou até ela; o dogmático põe a conclusão sem explicar como chegou a ela, e sucede, como se não vê relação entre o ponto de partida e o de chegada, que só quem tenha feito o raciocínio necessário, ou quem aceite a conclusão sem raciocínio pode convir nessa conclusão.

Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou já em toda outra mente humana. O que compete, pois, ao artista que quer exprimir determinado sentimento, por exemplo, é extrair desse sentimento aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos análogos dos outros homens, e não o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses sentimentos.

 

[14r]

 

A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impressão, e uma só; deve ter um sentido, e só um; seja sugestivo o processo, ou explícito. Isto se vê claramente no emprego do epíteto em literatura. Muito se tem bradado contra o emprego de adjectivos estranhos, ou juntos a substantivos com os quais não parecem poder ligar-se. Não há, porém, adjectivos estranhos, nem é possível construir uma frase a que se não possa atribuir um sentido qualquer. O que é necessário é que esse “sentido qualquer” seja só um, e não possivelmente um de vários. Ésquilo, numa frase célebre, refere-se ao “riso inúmero das ondas”; o epíteto é daqueles a que é uso chamar ousados, pois que tudo é ousado para quem a nada se atreve. Toda a gente, porém, compreende a frase, nem lhe é atribuível mais que um sentido. Há, porém, uma poetiza francesa que deu a um seu livro o título, mimado desta frase, de “O Coração Inúmero”, frase esta que pode ter vários sentidos, porém que não é certo que tenha este ou aquele. A “ousadia” do epíteto é igual no grego e na francesa; uma, porém, é a ousadia da inteligência, a outra a do capricho.

Pode ser, no caso de um epíteto desta última ordem, que a sensibilidade de várias pessoas convenha na mesma interpretação, e, ainda, que essa interpretação seja – o que também poderia não acontecer – aquela mesma que lhe o autor deu. Como, porém, a sensibilidade é passageira e local, local e passageira é também a interpretação que dela procede.

 

Estas considerações têm que ser interpretadas em relação às diversas artes, diversamente para cada uma, conforme sua matéria e fim. Aquele trecho musical cuja frescura e alegria me dá a mim a impressão de madrugada, pode dar a outro a impressão de Primavera. Como, porém, não é função da música definir as coisas, senão a emoção que geram, o trecho produziu, em verdade, a mesma impressão em mim e no outro, pois ambos sentimos nele frescura e alegria; o lembrar-me essa frescura a madrugada, e a outro a Primavera, é apenas a tradução pessoal que cada um de nós faz da sensação que recebeu, pois a sensação abstracta de alegria e de frescura é comum à madrugada e à Primavera. A um terceiro esse mesmo trecho poderia evocar, por exemplo, certa cena de amor, ou certa paisagem, sem que em alguma coisa saísse do seu fim próprio, logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam nele ligadas às ideias de frescura e de alegria. Do mesmo modo a frase de Ésquilo “riso inúmero das ondas” não é diversa em mim e num veneziano por em mim evocar o Atlântico e nele o Adriático.

 

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2337

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Estética

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Locais
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Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 7-12.
Exposições
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