Identificação
[BNP/E3, 100 – 33]
Um dos grandes males de que enfermam os nossos ecoes literários é a introdução na literatura de fenómenos alheios a ela, como, por exemplo, a política. Na política, como na religião, com em qualquer actividade superior que não seja rigorosamente a científica ou literária, a inteligência está subordinada a outra coisa, ao critério político, ou religioso, ou o que quer que seja, de que se trate. Na literatura e na ciência, propriamente tais, a inteligência está entregue à sua própria actividade, nem deve subordinar-se a coisa alguma. Que para o teólogo a filosofia seja ancilla theologiae[1], está bem; não está bem que, para o filosofo, ela seja ancilar de qualquer maneira.
Fazer da literatura um elemento de propaganda, seja do que for, é viciar a sua natureza e o seu fim. Os fins da inteligência pura são antagónicos aos fins da política, da religião, ou de quaisquer outras actividades sociais baseadas num fim moral ou social. A literatura tem também um fim moral ou social, que é ter nenhum. No que simples erudição, preocupa-a só a verdade; no que simples arte, preocupa-a só a beleza. Todo elemento que perturbe a simples expressão da verdade deve ser banido da primeira; todo elemento que perturbe a simples expressão da beleza deve ser excluído da segunda. Desde que o apelo da ciência tenda a ser extra-científico, deve ser repudiado; desde que o apelo da literatura seja ou tenda a ser extra-literário, deve ser posto de parte. Ninguém, por exemplo, tem o direito de examinar um problema histórico ou um problema religioso, se traz consigo qualquer preconceito político, ou qualquer preconceito religioso. Um republicano não pode pronunciar-se sobre o reinado de D. Carlos; um católico não pode pronunciar-se sobre a Bíblia. Isto é, podem, mas então entenda-se que não fazem erudição, mas política, social ou religiosa.
Se um católico de dispuser a examinar o problema (por exemplo) da autenticidade de qualquer passo dos Evangelhos, de que serve isso, se todos sabemos, anticipadamente, em que sentido vai resolvê-lo?
[1] escrava da filosofia