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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 107 – 16–17
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[Sobre
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre "António" de António Botto]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 107 – 16–17]

 

# A novela dramática de António Botto será compreendida como admirável por quase todos, tal a sua límpida e perfeita execução, o seu suave contorno psicológico, a exacta harmonia nela entre a matéria e a forma. Aqueles, porém, que duvidem dessa superioridade, fá-lo-ão, quando não por incompetência crítica (o que os põe fora de discussão e de persuasão), pela intromissão, no seu juízo, de dúvidas que não são estéticas. Versando a novela, embora com sóbria elegância, e portanto sem um elemento que esteticamente perturbe ou moralmente incomode, um complexo caso sexual, pode, contudo, e por isso mesmo, levantar dúvidas que procedem do velho problema das relações entre a arte e a moral. Essas dúvidas serão tanto mais acentuadas quanto menos o problema for compreendido. Convém, pois, examiná-lo, pelo menos sumariamente, para, quando mais não seja, o definir.

 

|No problema das relações entre a arte e a moral, a primeira coisa a fazer, como aliás em qualquer problema, é saber de que se trata, isto é, definir arte e moral e, derivada ou implicitamente, os seus respectivos fins. A maioria não faz isto, nem na discussão deste problema, nem na de qualquer outro. E assim muitas vezes sucede discordarem num assunto dois indivíduos que, se houvessem começado por defini-lo, verificariam que estão de acordo nele, ou, mais vezes ainda, concordarem num ponto dois indivíduos que realmente nele discordam, pois que cada um o define ou entende de uma maneira incomensurável com a outra. Grande número de discordâncias teóricas são da primeira espécie, grande número de concordâncias práticas da segunda. Sem o primeiro erro não seria possível a filosofia, sem o segundo seria impossível a política.

 

Fixemos, pois, desde já, o sentido de arte e de moral. A arte é a criação de prazer artificial, a moral a criação de felicidade artificial.

 

O homem é essencialmente egoísta; tudo, portanto, quanto pensa e faz tende, clara ou obscuramente, para a sua vantagem própria, seja pela satisfação de instintos directos e orgânicos, seja pela satisfação de instintos indirectos, que podem ser altruístas e assim aparentemente negarem o seu carácter de instintos. Quem dá esmola, fá-lo, ainda que use de sacrifício, ou para obter uma vantagem futura, como seja um paraíso, ou para satisfazer um impulso de misericórdia, isto é, para se livrar da opressão de uma pena, como quem bebe para se

 

[17r]

 

livrar da sede. Foi assim que, quando um amigo viu Hobbes dar esmola, e lhe perguntou se a daria se não fosse a indicação de Cristo, o filosofo respondeu que, vendo aquele pobre, sentiu pena, e deu esmola para se aliviar da pena que sentira.

 

Assim o homem, não buscando senão a satisfação dos seus instintos, não busca realmente senão ou o prazer, que é a satisfação de um instinto, ou a felicidade que é o estabelecimento da harmonia entre os instintos (às vezes pela supressão de alguns) para que sejam fáceis de satisfazer.

 

Assim como, como bem disse Condillac, nunca, por alto que subamos ou baixo que desçamos, saímos da nossa sensação, assim também, por altruístas que sejamos, nunca saímos da nossa satisfação.

 

O prazer e a felicidade, aparentemente opostos, são na realidade, como se viu, tão-somente diferentes. São, na realidade, espécies do mesmo género, que é a intensificação da vida. Tanto no prazer como na felicidade buscamos, de diversos modos, viver mais, aumentar a vida pelo aumento da consciência dela. Assim a arte e a moral, divergindo nos seus fins imediatos, já expostos, em certo modo servem o mesmo fim último.

 

A arte, disse, é a criação do prazer artificial, a moral a da felicidade artificial. São produtos da civilização, que é, por natureza, a substituição do artificial ao natural na vida humana e para os seus fins. Qualquer arte, desde a culinária à poesia, serve um prazer artificial.|

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2255

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Contemporâneos

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
Datas relacionadas
Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 350-351.
Exposições
Itens relacionados
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