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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 72 – 18–19
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O Provincianismo Português
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
O Provincianismo Português
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 72 – 18–19]

 

O PROVINCIANISMO PORTUGUÊS

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Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste; mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muito outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.

 

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.

 

O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo ou admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.

 

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do Orpheu, disse a Mário de Sá-Carneiro: "V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa v. é vítima da sua educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se v. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si."

 

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando – toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a Divina Comédia superior à Eneida. O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.

[19r]

 

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais profundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas em dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes da Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com grande clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com a absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.

 

A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, contemplando uma metade à outra como a uma coisa alheia, produto daquele desenvolvimento da largueza de consciência em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização.

 

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queiroz. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau da falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo A Relíquia, Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queiroz, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, com um verdadeiro, se bem que um limitado, artista.

 

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência, de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.

 

Notas de edição

Versão dactilografada do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título:  «O provincianismo português», in Notícias Ilustrado, ano I, 2ª série, 12 de Agosto de 1928, pp. 15.

Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2241

Classificação

Categoria
Literatura
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Legendas

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Português

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