Identificação
[BNP/E3, 141 – 57-60]
I.
Qualquer fenómeno literário – corrente, ou grupo, ou individualidade – é susceptível de ser considerado sob três aspectos, e sob esses três aspectos tem se ser considerado para ser completamente compreendido. Esses três pontos de vista são o psicológico, o literário, e o sociológico. Isto é, qualquer fenómeno da literatura tem de ser estudado – 1º, em si, directamente como produto de alma ou de almas; 2º, nas suas relações e filiação exclusivamente literárias, como produto literário; e 3º, na sua significação como produto social, como facto que se dá adentro de, e por, uma sociedade, tido como socialmente interpretativa[1], lido como indicador sociológico. No estudo – suponha-se – de uma qualquer corrente literária, importa pouco por qual dos três aspectos primeiro a examinamos, logo que sob todos os três aspectos sucessivamente e completamente se raciocine o assunto. Como fenómeno literário, como fenómeno psíquico, como fenómeno social sucessivamente analisando, os três aspectos de uma corrente interexplicam-se e completam-se, forma cada qual elementos especiais e essenciais para a interpretação sintética e integral da corrente. Nem o estudo total, nem qualquer dos estudos parciais, fica completo sem estarem completos, e coordenadamente completos, todos três.
[57v]
Por isso a uma análise da actual corrente literária portuguesa – iniciada e feita sob o ponto de vista sociológico nos nossos dois anteriores artigos – só ficará completa, e esses artigos em toda a sua extensão lógica compreensíveis, quando, neste artigo e em o outro juntarmos à análise sociológica, uma dupla análise complementar, primeiro psicológica, e literária depois.
Começámos pela análise sociológica porquanto, sendo essa a mais envolventemente explicativa das três, de princípio ficava, |posta ela inicialmente|, abrangido em todo o seu valor e superfície o movimento literário estudado. Leva-nos essa análise sociológica a conclusões que não pareciam estranhas, talvez, aos habituados a seguir raciocínios, mas que, ainda assim, eram de desorientar os de inteligência menos afoita a ler nas entrelinhas da concisão dialéctica. O nosso anterior estudo, partindo de uma análise – dos períodos máximos das literaturas inglesa e francesa – e desses só para simplificação – e da sua relação como as máximas, e homócronas, épocas sociais, veio, por uma aproximação, detalhe por detalhe feita, a constatar a semelhança completa do nosso actual período, tomada a sua literatura por indicador sociológico, com aquelas grandes épocas, chamadas a depor, do mesmo representativo modo as literaturas suas. Daí as naturais, referidas, conclusões sobre a vindoura grandeza lusitana. Esses detalhes, esses, por assim dizer, traços fisionómicos por onde a parecença entre os 3 períodos se colhia flagrante, eram do número, {…}, de nove: três diziam respeito à relação entre períodos literários máximos e a época política, ou |antecedente|, ou |contemporânea|, ou |subsequente|; e esses três pontos eram os exclusivamente sociológicos.
[58r]
No citado artigo, esgotada e provada a semelhança sociológica, igualmente, na {…} secção, se provou que, constatada que fora a originalidade, a elevação e a grandeza de uma corrente literária, a sua anti-tradicionalidade ficava provada na sua originalidade – como seria original se se baseasse em tradições? –, a sua não-popularidade provada na sua elevação – como ser popular sendo intelectualmente e metafisicamente complexa? –; e provado isto, de si ficava também provada a nacionalidade, o carácter nacional da corrente, visto que, como ali mais analiticamente provámos, originalidade absoluta só da alma da raça pode subir à tona de uma literatura. Poesia absolutamente original e poesia absolutamente nacional são termos interconvertíveis. – Tudo está agora, portanto, em provar a originalidade e elevação, e a grandeza das figuras individuais. Compete isto em parte a uma análise psicológica, e em parte a um estudo literário. Da análise psicológica sairá caracterizada a corrente literária, e, assim sendo, a sua originalidade ou não-originalidade, a sua elevação ou não-elevação quedarão em relevo – relevo que o estudo literário acentuará, rebuscando à filiação exclusivamente literária da corrente a importância dessa filiação – se influência nítida e constante, se mera associação, nem ponto de partida breve abandonado e excedido. Esse mesmo estudo, analisando o grau de construtividade, de intensidade, de lirismo das obras da corrente, dirá da grandeza dos seus |poetas|.
[59r]
III.
A actual poesia portuguesa é toda arcabouçada, em alma, de vago, de subtil e de indefinido. É a primeira e, até onde vai[2], a justa impressão que dela se tem. O uso constante de termos apenumbrados – desde (com outra alma) saudade, até vago, ermo, mistério –, uso insistente ao ponto de se tornar caracterizante quase, vinca isso para a memória |léxica|. Nisto está ela na legítima linha evolutiva da poesia europeia, crescentemente vaga, da Renascença ao Romantismo (omitida da {…} a degenerescência dos séculos XVII e XVIII) e ao simbolismo (francês). Mas vago, subtil e indefinido é este; porque se assemelha nisso e como distinguir dele a nossa actual corrente poética? Assemelha-se por uma razão: a subtileza, o vago, a complexidade são constitutivos da poesia da alma. E que a nossa envolve outro elemento de uma importância capital, elemento em que ela (mas já não o simbolismo, cujo laivo de degenerescência que se retivesse a trai) Também está na linha evolutiva da poesia – e esse elemento está em que é uma poesia da natureza. O simbolismo é subtileza poética de homens de †; o |lusitanismo| é {…} por homens {…}
Completamente poesia de alma e poesia da natureza – cada coisa num grau ainda não atingido ou {…} – é isto a nova poesia portuguesa. § Mas
[59v]
não é só isto; antes, é por ser só isto, e demasiadamente só isto, que não é só isto. É isto absorventemente e completamente, é poesia de natureza e de espírito absolutamente apenas: não inclui poesia amorosa, ou poesia social ou outro género de poesia que não {…}. Assim, no exemplo típico da |maravilhosa| Elegia, de Teixeira de Pascoaes – o amor torna-se simples noção, é causa |ocasional| e um maior e
O meu amor por ti
Amplia-se até Deus
Estes versos-chave da |poesia|, nitidamente {…}
Como poesia exclusivamente da alma, o simbolismo é individual e egoísta a um ponto nitidamente mórbido. Chegou a sua dolorosa leitura de Albert Samain {…}
Aquilo sobe à complexidade doentia das decadências extremas. É ópio em verso. É um filho de noite e de desassossego, {…}
O facto da nova poesia portuguesa ser absorventemente uma poesia metafísica é de capital importância, como ulteriores deduções farão notar. Cumpre que se insista nele.
[60r]
Poesia de alma e de natureza, tem uma integralidade que nenhuma outra tem.
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A nova poesia portuguesa é absolutamente religiosa mas de uma religiosidade nova, fonte capital e importantíssima. O género de religiosidade que a nossa poesia contém aparece pela 1ª vez nessa poesia. Mais: a sua metafísica (como adiante se verá) é nova. O mesmo não aconteceu à poesia da Renascença (exemplo à inglesa, {…}, nem na Francesa muito menos), ao romantismo que era {…} e ao simbolismo que, onde é religioso, é ou católico ou quase-católico. O seu espírito é católico profanamente.
Mas a nossa nova poesia é mais do que uma poesia absorventemente metafísica. É uma poesia religiosa. É mais que uma poesia religiosa: é uma poesia de uma nova religião. (É uma poesia da alma da natureza, e não é uma poesia de mais nada. Não há maneira de se escrever uma frase de amor, perfeita, nem uma outra coisa… Mais perfeita do que Rémy de Gourmont, nesta atitude podem os nossos poetas dizer que para eles la forme est une metaphysique)
Estes 3 elementos da nossa poesia, interagindo dão a cada qual uma especial feição. Não são 3 elementos compondo uma alma tripla. É uma alma una com 3 aspectos, cada qual participante da unidade total e íntegra da alma, |e, portanto, dos outros|.
[60v]
Na nova poesia portuguesa todo o amor é um além-amor. Pode ser amor nas quadras de um soneto: nos tercetos já é oração.
Ora a preocupação constante da alma e da natureza, interpretativamente, e só da alma e natureza é uma preocupação puramente metafísica, mas uma preocupação puramente metafísica em poesia, é metafísica em emoção – isto é, em poesia é uma poesia religiosa.
O carácter religioso da poesia está nítido nos temas que ela vai buscar ao culto católico, e ao paganismo arcaico. Longe, vago, {…} E a poesia, por enquanto suprema, da corrente tem um título religioso – Oração à Luz.
[1] socialmente interpretativa /explicado por ela e explicando-a\
[2] vai /chega\
Apontamentos manuscritos preparatórios do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico», in A Águia, 2ª série, nos 9, 11, 12, Porto, Setembro, Novembro, Dezembro de 1912, pp. 86-94, 153-157, 188-192.