Identificação
[BNP/E3, 14E – 52]
Bartolomeu Marinheiro:
Escrever livros que combinem matéria elevada ou intensa com legibilidade e compreensibilidade para crianças é obra a que se adaptam com êxito só duas espécies de temperamentos – aqueles, especiais, que para essa especial combinação psíquica se acham intelectualmente canalizados, e aqueles, de génios máximos, que a tudo se adaptam por |alma| de uma intensa faculdade intuicionante e adaptativa. O caso é, na essência, o mesmo que o da poesia de ordem popular (tirante a, vagamente popular, da estrita e restrita quadra): para a escrever com êxito é preciso, ou ser povo, ou possuir o alto grau de intuição que possa com êxito levar o poeta a intuicionar-se povo.
O sr. Afonso Lopes-Vieira não pertence a nenhuma destas duas categorias de poetas. É demasiado artista de esforço, de estudo, de rebuscagem de ritmos e de formas para se poder sustentar que ele é simples e ingénuo em sua arte; mas uma leitura, ainda que
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rápida, da sua obra, e, mesmo, o mero constatar do esforço que ostensivamente põe no ritmar, (ars est celare artem) e, pior, da falência artística, patente, não só em ser esse esforço evidente, mas em redondo, salvo raras excepções, em nada aproveitável – tudo isto torna impossível o considerá-lo um grande poeta, quanto mais um poeta máximo.
Era de supor portanto que uma obra como a sua, actual, de livrinhos para as crianças – tanto mais difícil que a popular – representasse uma falência. Assim foi. Nunca se fez tão boa vontade em |bestializar| a infância, como dulcidamente o tem feito o sr. Lopes Vieira, e, que, em 2ª coincidência, faz. O desgraçadinho cujo cunho seja atingido pelo Bartolomeu Marinheiro – ou, para o caso, por qualquer dos antecedentes na asneira – {…}
Feito com combinações de reminiscências a que só uma generosidade quase tosca poderá deixar de chamar idiota, alinhavado com uma incompetência de narrar que é, ela, de muito sub-infantil, magistralmente produzido pela litogra. de C. C. e editado pela Livraria Ferreira – o livro simplíssimo do Sr. Lopes Vieira correrá – mundo, |*não fatalmente| que o mundo – mas Portugal contribuindo poderosamente para aquela extinção formativa de toda a inteligência e importância que é um dos |*simbolistas| fenómenos modernos e que dispensam a colaboração – assídua ao que parece – do sr. Lopes Vieira para seguir caminho ascendente.
Versão manuscrita preparatória do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Naufrágio de Bartolomeu», in Teatro: Revista de Crítica, nº 1, Lisboa, 1 de Março de 1913, p. 6.