Virtual Archive of the Orpheu Generation

Fernando Pessoa
Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14E – 10
BNP/E3, 14E – 10
Fernando Pessoa
Identificação
[Sobre Shakespeare]

[BNP/E3, 14E – 10]

 

Lear is a fellow-man, whom we sympathize with; Oswald is a lunatic, whom we can but pity. We may learn something from the circumstances of his “case”; […] he himself is nothing to us. […]

 

Abnormality may be considered either as simply abnormality, or as a deficiency or excess of normal function, from which, being a deficiency or an excess, it departs, but with which it is nevertheless connected as being a deficiency or excess of that function, and not of another. If we compare the presentation of madness by a first-rate artist like Shakespeare (e.g., in King Lear) with that by a third-rate artist like Ibsen (e.g., in Ghosts), we have the two types of {…}

 

Lear’s is a human madness, Oswald’s is madness. We feel ourselves in the first, though we can have had no experience within ourselves of senile dementia; we do not feel ourselves in the other, but look at it from the outside as at a driveller in an asylum. The first is of us; the second is somebody else.

 

Now the Russians are generally able to put with great force the abnormal as abnormal; they fail in putting the abnormal as nevertheless human.

|I have not read “Oblomov”, but I agree truly and intelligently, without having read it, with Mr. Priestley’s criticism of it.|

 

The fact is that the Russians, being as yet outside the universal tradition or the tradition of universality, which we derive from the Greeks and which is the substance of all art. […]

 

The difficulty in distinguishing between the forceful presentation of the odd which is oddity and the novel or even odd presentation of the usual which is genius.

 

We have all had moods and moments which, if worked but into a personality and coordinated into a human being[1], will yield the senile dementia of Lear which is generalized, which no one[2] of us can have experienced it. But the only ones[3] of us who have had moods like Oswald’s which as surprising cannot appreciate them, because general paralysis is also a country from whose bourne no mind returns.

 

[10v]

 

{…} the forceful presentation of the inhuman and the {…}

 

{…} the inhuman presentation of the human, and the human presentation of the inhuman.

 

Genius is very easily confounded[4] with forceful oddity, on one side, and extreme intellectual skill, on the other side. We have in Portuguese two words which are both translations of the single English word genius – génio (which is genius proper, in the high sense) and ingenho, which means the simulation of genius by use of extreme intellectual, but no more than intellectual skill.

 

 

[BNP/E3, 14E - 10]

 

Lear é um semelhante, com quem simpatizamos; Oswald é um lunático, de quem só podemos ter pena. Podemos aprender algo com as circunstâncias do seu “caso”; […] ele mesmo não é nada para nós. […] 

 

A anormalidade pode ser considerada simplesmente como anormalidade, ou como uma deficiência ou excesso da função normal, da qual, sendo uma deficiência ou um excesso, ela se afasta, mas com a qual está, no entanto, ligada como sendo uma deficiência ou excesso dessa função, e não de outra. Se compararmos a apresentação da loucura por um artista de primeira ordem como Shakespeare (por exemplo, em King Lear) com a de um artista de terceira ordem como Ibsen (por exemplo, em Espectros), temos os dois tipos de {…} 

 

A loucura de Lear é humana, a de Oswald é loucura. Reconhecemo-nos no primeiro, embora não possamos ter nenhuma experiência dentro de nós de demência senil; não nos reconhecemos no outro, mas olhamo-lo de fora, como um tolo num asilo. A primeira é nossa; a segunda é de outra pessoa. 

 

Mas os russos geralmente são capazes de apresentar com grande ênfase o anormal como anormal; eles falham, porém, ao colocar o anormal como humano.

|Não li “Oblomov”, mas concordo verdadeira e inteligentemente, sem o ter lido, com as críticas que o Sr. Priestley lhe faz.| 

 

O facto é que os russos, estando ainda fora da tradição universal ou da tradição da universalidade, que derivamos dos gregos e que é a substância de toda arte. […] 

 

A dificuldade em distinguir entre a apresentação contundente do bizarro que é bizarra e a apresentação nova ou mesmo bizarra do usual que é o génio.

 

Todos nós já tivemos estados de espírito e momentos que, se trabalhados em uma personalidade e coordenados em um ser humano, produzirão a demência senil de Lear que é generalizada, que nenhum de nós poderia ter experimentado. Mas os únicos de nós que tiveram estados de espírito como os de Oswald, que são surpreendentes, não podem apreciá-los, porque a paralisia geral também é um país de cujo limite nenhuma mente retorna.

 

[10v]

 

{…} a apresentação contundente do desumano e do {…} 

 

{…} a apresentação desumana do humano, e a apresentação humana do desumano. 

 

O génio é facilmente confundido com o bastante bizarro, por um lado, e com a extrema habilidade intelectual, por outro lado. Temos em português duas palavras que são ambas traduções da única palavra inglesa genius - génio (que é propriamente genius, em sentido elevado) e ingenho, que significa a simulação de génio pelo uso de extrema habilidade intelectual, mas não mais do que intelectual.

 

 

 

[1] being /type\ /truth\

[2] which no one /for none\

[3] only ones /unhappy few\

[4] confounded /(confused)\

Marcamos com o símbolo […] – que indica “suporte material danificado” – um conjunto de apontamentos a lápis de difícil leitura devido ao desgaste do material original.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3791
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Inglês
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 261-262.