Identificação
[BNP/E3, 14B – 48-50]
Camões.
Há uma singularidade que a Camões destaca dentre os épicos todos, que o torna épico entre os poetas desse mesmo sentimento. O patriotismo.
Poetas patrióticos – tem havido muitos e vários. Poeta do patriotismo há só Camões. De seu natural falho de imaginação, mediocremente inteligente (nem subtil, nem profundo), minimamente construtivo e coordenado, tudo isso – imaginação, inteligência, construção – lhe surge e lhe é dado pela violência e desvairo com que sente o amor da pátria.
Os Lusíadas não é um dos grandes poemas épicos do mundo. Faltam ao seu autor qualidades (as máximas, sobretudo) do puro-artista para o fazer atingir maximidades e extremos. Mas é, de entre as epopeias todas a mais milagrosamente epopeica. Porque a sua base é lírica, não epopeica.
[49r]
É a única epopeia construída sentimentalmente. Nisto |reside| o seu valor extraordinário. É lirismo que saiu para fora do ser lírico.
Variada cretinagem – gente que se maça a ler coisas mais extensas que um artigo de fundo – costuma dizer que prefere Camões poeta lírico, a Camões poeta épico. Tem razão, se bem que a não tenham. Realmente há só Camões poeta lírico esse Camões poeta lírico é máximo quando é Camões poeta épico.
Entendamo-nos bem: A poesia épica baseia-se num poder de imaginação construtora, ao passo que a poesia dramática se apoia na duma imaginação {…}, e a lírica assenta em ser de uma imaginação egoística, egocêntrica, pessoal. Os poetas épicos são de 3 espécies, e são de 3, porque Camões existe, porque ele é o único na sua. Há os épicos de imaginação (Homero, Virgílio, Dante, Milton) – são os que abrangem assuntos tidos por eles por verdadeiros, olhando à sua grandeza e à sua complexidade variável {…} há os épicos de fantasia (Ariosto, Tasso, Spenser) que cantam o tido por eles por falso e irreal {…}
[50r]
Construir uma obra qualquer – seja qual for o seu caracter ou extensão – sobre um sentimento pessoal (e não propriamente concebido {…} como artístico) é fazer obra lírica.
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= Camões =
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Parece, à 1ª vista, difícil de encontrar uma frase diferencialmente descritiva de Camões. Mas se lhe chamarmos o “poeta do patriotismo” pouco erraremos o descrevê-lo. E se, com maiores escrúpulos e critérios de acerto, lhe chamarmos o épico do patriotismo, terá morrido na frase tudo o que nela era duvidoso.
Quedará banal a frase, mas compensa-se bem com o ser justa. É um trajo simples que fica natural e bom no corpo para o qual é feito.
“Épico do patriotismo – entendamo-nos bem
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R e G Leal
Nuno de Oliveira
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Ant. †
[48v]
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Poeta propriamente épico, constitucionalmente épico é aquele que, qualquer que seja a base[1] sentimental do assunto, {…}
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Este é que é o ponto capital. É vendo isto que vemos a grandeza de Camões.
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E só soa no campo, cheio da solidão[2] de ser
|*O rir, rir, rir, rir, rir que a cigarra ri|
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E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos prantos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos.
Tecida de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
[49v]
Em outros tempos, lindas, lindas
Celindas e Clorindas, brandas
{…}
As vindas vendo das varandas
E ouvindo, mais para as bandas
Dos conventos {…}
Rastros orquestrais
‘Strondeando ainda
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Através torturas e labirintos laterais
Troam tambores longe. Finda
Outra e trémula música e entre ela, ainda
Há troares de longe, entre os húmidos ais,
Vem, música alegre saltitada, |e mais| {…}
[50v]
E um clamor da música pelos campos se desgarra
E entre o parar da música e o recomeçar
|Erra o riso do rir sórdido da cigarra.|
[1] a base /o conteúdo\
[2] /vão e\ cheio da solidão /(e)\