Identificação
[BNP/E3, 14B – 37-39]
Alberto Caeiro – artigo para A Águia
…acrescido de uma entrevista altamente provocadora, num semanário de Lisboa, em que esta, a nossa pobre cidade, que habita a sombra tão sossegadamente, lhe mereceu dois secos remoques.
Pouco importa isto em geral, e em particular, mormente, o que a meu respeito ouvi. Quero, em todo o caso, pagar-lhe, fazendo-lhe a justiça que merece que lhe seja feita. E a princípio lhe direi que, se discordo do que ele seja, como se intitula, o maior poeta do mundo, não deixa de ser um dos maiores da nossa época e da nossa terra.
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{…} é com elementos perfeitamente espiritualistas que constrói o edifício do seu materialismo absoluto.
Por mais que ele queira encontrar nas coisas “existência” e não significação, basta ler a poesia numerada {…} para se ver quanto – e flagrantemente – sai da órbita das meras auto-{…}, atribuições inspiracionais. A poesia {…} é esta:
(borboleta…
[37v]
Estimo em mim a circunstância de ao mesmo tempo que admiro profundamente estes versos magníficos, poder apontar ao seu autor que cometeu misticismo puro. |Tratar-se-á|, talvez, de um misticismo às avessas, com uma aplicação nova e especial; mas do misticismo não pode haver dúvida nenhuma.
O materialista espontâneo e absoluto nunca faria a distinção ultra-intelectual, ultra-metafísica, ultra-mística, entre uma borboleta como borboleta e o movimento e a cor das suas asas, consideradas estas, como movimento e cor abstractos. Sim, não se trata de uma forma de ver dentro do materialismo do Poeta; aqui há um ponto de vista abstracto e estranho ao materialismo.
No fundo, a sua observação é tão pouco materialista e concreta que ele (repara) numa folha numa determinada árvore como numa determinada flor: é sempre ver árvores, ver flores, abstractamente. Podia ser um homem da cidade, de livros apenas, afastado de tudo quanto é natureza e os problemas dela, tal o seu afastamento de quanto, na natureza, é realmente realidade, {…}
[38r]
Um homem que diz que não há “árvores” (no plural) mas “muitas vezes uma árvore” podia ter ido mais longe, no logro lógico do seu materialismo, aqui apenas mental, corpóreo e não materialista, e ter reparado em que “árvore”, na sua teoria, não existe; que existe tal carvalho, tal sobreiro, tal eucalipto – mais nem “eucalipto”, “sobreiro” ou “carvalho”, abstractamente, existem, nem “árvore” é “realidade” alguma.
O que o sr. Alberto Caeiro faz é uma abstracção concreta. Veste de concreto uma tendência abstracta, que, naturalmente não de propósito, não deixa atingir o seu máximo de abstracção, mas que fica, bem reparando, nem abstracta nem concreta. E o materialismo abstracto fica tornado, por conseguinte, um materialismo extremamente relativo.
No sr. Alberto Caeiro toda a inspiração, longe de ser dos sentidos, é da inteligência. Ele, propriamente, não é um poeta. É um metafísico à grega, escrevendo em verso teorizações puramente metafísicas.
[38v]
Repito que o admiro, que o admiro extraordinariamente. Mas não apraz à minha análise chamar-lhe um poeta abstractamente materialista. É um filósofo abstractamente materialista, aureolado[1] de alma, em um poeta abstractamente místico. Creio no Deus em que o sr. Caeiro não crê (se bem que fala tanto nele) que este é a |*ficção| do sr. Caeiro e a verdade pura.
Assim como para materialista o acho espiritualista em extremo, e como para poeta o acho filósofo em excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais. Sei o que é pensar – concebo objecções e um dos meus maiores prazeres, ao ler O Guardador de Rebanhos, foi reparar como o Poeta, aqui e ali, nesta ou naquela altura dos seus versos, vai, sub-repticiamente ou não, respondendo às objecções possíveis. Assim {…}
Toda a sua obra, para quem sabe, analisando, olhar para além do seu primeiro aspecto de desordenada e casual, é extraordinariamente calculada, medida, reparada.
[39r]
Por muito que repare para as coisas, o sr. Alberto Caeiro repara razoavelmente para si-próprio. Enganará os incautos da crítica; mas para quem, com eu, não vê, no dado, senão o analisável, {…}
Torno a repetir que admiro extraordinariamente o sr. Alberto Caeiro e que o acho um dos maiores e dos mais originais poetas que tenho lido. E torno também a repetir-vos que não aceito como ele se nos oferece, mas que, sob a máscara do materialismo absoluto, lhe vejo a alma mística, cheia de {…}. Ele perdoar-me-á que eu lha diga que mais o admiro por isso, que mais interessante o acho por isso.
Note-se bem que, ao afirmar que o sr. Alberto Caeiro é o consciente na sua arte e que o seu materialismo é um nome, eu não quero dizer que ele tenha consciência disso… Creio que ele se engana a si-próprio. Ele não tem consciência, creio, da sua consciência.
[1] aureolado /consumido fisicamente\