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Fernando Pessoa
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BNP/E3, 14A – 25-27
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ANTÓNIO BOTTO E A ESTÉTICA DECADENTE
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
ANTÓNIO BOTTO E A ESTÉTICA DECADENTE
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 14A – 25-27]

 

ANTÓNIO BOTTO E A ESTÉTICA DECADENTE

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António Botto é o único português, dos que até hoje conhecidamente escreveram, a quem a designação de esteta decadente se pode aplicar sem restrição. Com um perfeito instinto segue ele o ideal que podemos chamar estético, e que é uma das formas do ideal distintivo dos antigos gregos. Segue-o, porém, a par de com o instinto, com a inteligência, porque os ideais gregos são intelectuais, e nenhum deles pode, portanto, ser seguido inconscientemente. Mas se quisermos buscar na Grécia antiga um tipo mental correspondente ao de António Botto, encontrá-lo-emos só na decadência daquela civilização. É ainda com justo instinto, a que reforça uma perfeita inteligência, que António Botto a si mesmo aplica a designação de decadente.

 

É esteta todo aquele, artista criador ou não, em cujo espírito a ideia de beleza é o elemento não só preponderante, senão individuante e definidor. É decadente todo aquele em cujo espírito o elemento definidor tem uma expressão oposta àquela que devera ter. O esteta não-decadente tem da beleza uma visão ou entusiástica e solene, se é por natureza um emotivo; ou trágica e profunda, se é por índole um intelectual. No esteta decadente trocam-se as manifestações das duas índoles; e, por isso mesmo que se trocam, não sendo as que deveram ser, perdem a força vital que lhes é própria quando naturais. E, assim, se ele for um emotivo, terá da beleza uma visão triste e dolente, que não já trágica e profunda; se for um intelectual, será calma e fria, que não já solene e entusiástica, a sua visão da beleza.

 

António Botto não é por índole um intelectual, qualquer que seja a sua inteligência, sendo que chamando a alguém “um intelectual” se não define seu grau de inteligência, senão a preponderância dos efeitos da inteligência nas manifestações da índole. Dos três sinais objectivos, que distinguem o intelectual que escreve, - a capacidade de pensamento abstracto, o desenvolvimento lógico da matéria, e a força e novidade da frase e do epíteto –, ele nem tem, nem simula ter, nenhum. Tem, sim, os sinais que, no mesmo campo, distinguem o emotivo – a confusão ideativa, a lentidão e difusão do estilo, a predominância do ritmo sobre a expressão verbal.

 

Sendo assim, se António Botto for esteta, e esteta decadente, veremos nas obras dele, que sejam típicas, a expressão do critério de beleza que distingue tal esteta, quando é por índole um emotivo. Para ele a beleza será uma coisa mórbida e triste, antes uma doença da vida que a imagem superior da mesma vida. E na proporção em que ele realize em suas obras a figuração deste critério, nessa mesma proporção serão essas obras valiosas, assim para o crítico como para o psicólogo.

 

[26r]

 

Tem duas formas a beleza, em nosso conceito dela – a beleza em si, e a beleza fonte de prazer. O primeiro é o conceito abstracto, o segundo o concreto, e, como sempre se dá com estas duas formas de um conceito, é o conceito concreto que é o primário, o abstracto que é o secundário, tendo surgido este de aquele, por diferenciação, no decurso da evolução psíquica. Só uma grande imaginação abstracta pode formar da beleza um conceito em que ela apareça liberta, ou quase liberta, da ideia de prazer em que nasceu; e tal conceito, ou qualquer aproximação dele, não será possível a uma índole senão intelectual. Uma índole emotiva tem, porém, o poder de abstracção do homem normal no estádio evolutivo presente; nela também se forma uma ideia abstracta de beleza, mas, como o grau de abstracção é menor e portanto o conceito de beleza está mais próximo da origem, teremos que considerar, no estudo das obras de uma natureza emotiva, não só o conceito de beleza, senão também o conceito de prazer, pois que é na juncão dos dois, que só a análise artificialmente separa, que veremos integralmente que conceito ela forma da beleza.

 

Quem tem da beleza um conceito triste e dolente, força é que se prenda, em ela, ao que naturalmente provoque em nós essa tristeza e essa dolência. O que na beleza é essencialmente triste é a mortalidade dela; e, para a índole que não separa bem a ideia de beleza da do prazer que causa, essa mortalidade é sobretudo notável na beleza física humana, que é nossa inda que a não tenhamos, porque é daqueles que são como nós, e que é a que directamente implica a ideia de prazer. O esteta decadente atenderá pois, antes que a tudo mais, à beleza humana que passa, à fatalidade lenta do envelhecimento, ao momento passageiro em que se fixa, para logo perder, o gesto, o olhar, o sorriso que nunca lográmos possuir. Atenderá ainda, visto que a beleza passa, àqueles artifícios que ao menos fixam, estabilizam, a atmosfera que a envolve, a impressão que cria – o luxo, o ornato, a maquilhagem, a frase nula que esculpe um momento, o convívio inútil que voa sem remos à tona absurda da hora. E atenderá também – visto que a beleza, porque passa, é sempre pouca – a toda a beleza que puder, não distinguindo nela legítimo e ilegítimo, como fazem os sentimentos que não são o estético: o sentimento sexual, que repugna a beleza do sexo próprio; o sentimento moral, a que desgosta aquela que é acompanhada de perversão da índole; sentimento intelectual, que rejeita aquela em que o espírito ou a graça não anima. E, justamente porque assim é levado a incluir no âmbito de seu interesse formas e modos de beleza estranhos aos naturais, o esteta decadente de preferência se fixa na contemplação daqueles, que, por anormais, mais excitam e prendem, desde que os não repugnemos. Atenderá pois mais à beleza que passa rápida que àquela que algum tempo se prolonga; mais ao artifício que à naturalidade; mais à beleza imoral ou inexpressiva que à que participa dos fins da inteligência e da vida. E será quase sempre na beleza humana e em relação a ela, porque no prazer e em relação a ele, que empregará seu senso estético.

 

[27r]

 

Quem tem do prazer um conceito triste e dolente – porque o tenha da beleza, que dele é fonte –, conceberá o prazer não como alegria, senão como excitação; não como dor, por ser sempre insatisfeito, senão como mágoa, por não saber satisfazer-se; não como alívio da dor da vida, senão como alívio do tédio de vivê-la. O prazer, para o esteta decadente, serve de encher o vácuo que é a existência para quem é incapaz de sentir ou de pensar profundamente, de verdadeiramente viver ou contemplar a vida; mas que não é também um homem normal, vogando incriticamente no rio da vida quotidiana. Este conceito, que o esteta decadente forma do prazer, é talvez o mais trágico de todos, porque procede de um conceito da vida como pura vacuidade. Só a uma índole intelectual, porém, é dado ter, pelo exercício da análise, a horrível consciência disto: de outro modo se não explica o íntimo frémito de nojo e de horror que atravessa as obras de Baudelaire, nem está de todo ausente das obras melhores de Wilde. Uma índole emotiva está livre, excepto intuitiva e portanto subconscientemente, desta tragédia da alma; mas um mal-estar das sensações, uma intranquilidade dos sentimentos, são a obscura emergência dela.

 

A parte típica das composições de António Botto é a que ele reuniu sob o título Canções, a que devem juntar-se outros poemas, de igual natureza, compostos depois delas e alguns formando o livro presente, e, ainda, um drama inédito, António, por certo a melhor e a mais típica de suas obras. Como não escrevemos para os que desconhecem, ou para os que não querem conhecer, essas obras, dispensamo-nos de alongar este estudo, fazendo, com citações escusadas, a aplicação, passo a passo, aos poemas de António Botto, ou ao drama dele, dos característicos objectivos que indicámos, juntando a indicação de suas causas, como sendo os do escritor que é por índole um esteta decadente, mormente quando o é emotivo. Qualquer livro ou parte de livro de António Botto revelará ao menos arguto a coincidência entre essas obras e o que deixámos dito. Para isso o deixámos dito.

 

FERNANDO PESSOA

 

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/3092

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
António Botto, Canções, Tradução para o inglês de Fernando Pessoa, Edição, prefácio e notas de Jerónimo Pizarro e Nuno Ribeiro, Lisboa, Guimarães Editora, 2010, pp. 171-176.
Exposições
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