Fernando Pessoa
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Fernando Pessoa
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BNP-E3, 19 - 27-29
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BNP-E3, 19 - 27-29
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre a arte moderna]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[19 – 27-29]

 

Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho.

 

Modernamente deu-se a diferenciação entre o pensamento e a acção, entre a ideia do esforço, o ideal, e o próprio esforço, a realização. Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. O mundo humano era pequeno e simples. Era-o todo o mundo até à época moderna. Não havia a complexidade de poder a que chamamos a democracia, não havia a intensidade de vida que devemos àquilo a que chamamos o industrialismo, nem havia a dispersão de vida, o alargamento da realidade que as descobertas deram e resulta no imperialismo. Hoje o mundo exterior humano é desta complexidade tripla e horrorosa. Logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento da impossibilidade. [A própria ignorância medieval era uma força de sonho.] Hoje tudo tem o como e o porquê científicos e exactos. Explorar a África seria aventureiro, mas não é já tenebroso e estranho; procurar o Pólo será arriscado, mas já não é. O Mistério morreu na vida: quem vai explorar a África ou vai {…} o Pólo não leva em si o pavor do que virá encontrar, porque sabe que só encontrará coisas cientificamente conhecidas ou cientificamente cognoscíveis. Já não há ousadia: basta a coragem física de um homem fisicamente enérgico. Por isso as mais loucas

 

[27v]

 

tentativas de idealização dos nossos aviadores e exploradores não logram ser senão ridículas, tão de estatura de alma mediana estas são. É que são homens de ciência, homens de prática. E os grandes homens antigos eram homens de sonho e |de acção|.

Os homens diminuem. Gradualmente, cada vez mais, governar é administrar, guiar.

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Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior – para o sonho crescentemente, cada vez mais para mais sonho.

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O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado da música aos seus versos, como Ariel estava preso na Árvore de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho: e o desenvolvimento da música, moderno todo, no que valioso e grande, é a confirmação suprema de quanto aqui teorizamos. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.

O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estranho. O sonho é da vista geralmente. Pouco sonhamos auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, em sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho).

 

[28r]

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Nordau caiu no mais flagrante e grosseiro dos erros de que um raciocinador pode fazer vítima a matéria sobre que raciocina. Confundiu um movimento de progresso, porque de diferenciação, com um movimento de regressão; tomou o príncipio, hesitante e perplexo como todos os começares, de uma nova forma de arte, por uma arte já feita; e não soube destrinçar entre o essencial e o ocasional, o instintivo e o teórico e postiço num movimento artístico, porquanto, não descendo à compreensão do unde e do |quo| da civilização actual, {…}

 

Viu os elementos de decadência que o movimento simbolista continha — o que pouco o elogia, porque esses elementos são flagrantes — e não viu o que, por detrás desses elementos, faz de Dante Gabriel Rossetti um grande poeta, e um grande poeta de Paul Verlaine. Nordau fez mais de asneira e incompreensão: confundia sob a mesma classificação, aparentemente (salvo o postiço diferenciar de “misticismo” e “egotismo”), formas de arte diferentes, de diferente significação. Assim englobou Nietzsche e {…} sob o mesmo {…}, como se estes significassem não só apenas degenerescência, mas a mesma coisa, fosse essa coisa o que fosse.

 

[28v]

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Havia 3 caminhos a seguir ante este novo estado civilizacional:

(1) entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida oca e ruidosa, o esforço sumamente esforço a Natureza simplesmente Natureza [e Vida] – e este caminho seguiram Whitman, Nietzsche, Verhaeren, e, entre nós, a corrente que incluiu Nunes Claro, Sílvio Rebelo e João de Barros.

(2) pôr-se ao lado, à parte dessa corrente, num sonho todo individual, todo isolado, reagindo inertemente e passivamente contra a vida moderna, quer pela ânsia medieval, a medievalité, quer pela fuga para o longe no espaço, quer para o estranho e o invulgar na vida – o Longe na vida afinal. Foi o caminho que seguiram Edgar Poe, Baudelaire (fugindo para o Estranho), Rossetti, Verlaine (para a Idade Media, e para o Estranho), Eugénio de Castro (para a Grécia), Loti (para o Oriente).

(3) Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho e fugindo da “Realidade” nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) – que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa novíssima[1] poesia.

 

[29r]

 

Quem quiser compreender o simbolismo tem de contar com a sua tripla natureza:

É: (1) uma decadência do romantismo.

(2) um movimento de reacção contra o cientismo.

(3) um estádio na evolução (ou princípio duma evolução) de uma nova arte.

 

Quem não vir isto, tudo, não compreenderá o simbolismo. Nordau viu só (1), outros vêem só (2) ou (3).

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O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho.

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O misticismo e o egotismo, encontrados por Nordau na arte moderna, são os aspectos mórbidos do misticismo equilibrado e do personalismo característicos da arte moderna, e que produziram Goethe, tão querido de Max Nordau, no seu primeiro estádio.

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Em seu carácter, o sonhador mostra certos característicos. A assexualidade, ou parassexualidade, é um, e evidente; é a forma mais flagrante da sua incapacidade para lidar com a normalidade e a realidade das coisas.

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[29v]

 

Aquilo a que se chama a arte moderna, aquilo que é por enquanto a arte moderna, é apenas o princípio de uma arte – ou, antes, a transição entre os dois estádios da evolução civilizacional. Entre o chamado romantismo e a arte que vai agora caminhando rapidamente para o seu auge.

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O Infante D. Henrique é o perfeito tipo do sonhador. Desde a sua assexualidade até ao seu perfeito sacrifício dos outros – é um sonhador. Mas viveu no tempo em que se podia sonhar.

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Hoje o sonho é sempre de coisas inexequíveis. O que se concebe como exequível é porque se concebe como cientificamente exequível, e o que se concebe como cientificamente qualquer coisa não pode ser matéria de sonho.

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[1] novíssima /recentíssima\

Notas de edição

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

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Notas à data
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Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 156-160.
Exposições
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