Identificação
[BNP/E3, 18 – 52–53]
Meu prezado camarada:[1]
Recebi ontem a sua carta, muito lha agradeço,[2] e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, |tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro,| escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não {…}. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol, ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua – o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Segundo, porque repudio os processos antes estabelecendo a expressão. O que posso ser, e neste caso fui, é translato.
Em substância, ainda que resumida na expressão[3], o ponto de vista em que fui translato que lhe expus é o seguinte[4]:
1) Toda |a| arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível e portanto não pode constituir arte;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, e, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação a frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo – construção, ou ordem[5] lógica nos espíritos superiores, ou simplesmente conceito de moda, escola ou corrente nos inferiores.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, da maior acentuação de um dos outros dois elementos do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista a) o inspirado ou espontâneo, em
[53r]
quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quere dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo – isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola, ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.
Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: (1) a sua sensibilidade é boa, viva e rica (ou como certo o seu livro mais prova) e, por natureza, de tipo intelectual; (2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobre intelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; (3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido – mas era a minha opinião, que não a de outrem, que lhe dava), ou (a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível a intelectualização da sensação, ou (b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela extensão da sensação.
Isto não é, talvez, muito claro; vou explicar melhor. Servir-me-ei de exemplos[6]. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto seja ou não uma definição exactamente muito verdadeira representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias”. Ao centro está a sensação – a beleza, e é uma representação nítida; ou pura, e é esta mais vaga como representação, e a nitidez – faz nos elementos acessórios que mais destacam, destacando-lhe o vago a pura sensação central.
Agora os exemplos. Para muitos mal-entendidos, isso leva-los |*ao povo|, que não sofre de consciência si mesmo, {…}
É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais intelectual que, de momento, e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse defronte com a sensibilidade. Vê as desvantagens de se ser intelectual?
Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de {…}
Escrevi à pressa a minha carta a […]
Assim, tendo f[…]
sou conciso, […]
era apres […]
fui metafórico em vez de lógico […]
Escrevendo {…}
Meu prezado camarada:
[2] muito lha agradeço, /que agradeço,\
[3] ainda que resumida na expressão /e expondo discursivamente\
[4] é o seguinte /desdobra-se em\
[5] ordem /máxima\
[6] de exemplos /porém de explicações, isto é exemplos\