Identificação
[BNP/E3, 103 – 40–41]
Materialismo; espiritualismo, dualismo puro.
Materialismo absoluto, espiritualismo absoluto;
A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais |queridamente| absoluto. Não há, é certo, mais[1] elementos da experiência que não a matéria e o espírito: o pensamento, porém, pode tentar suprimir – e pode, de certo modo, no que teoria abstracta, chegar a suprimir – este dualismo. De três modos o pode fazer: 1º Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é, (consoante já passim vimos) reduzindo o dualismo ao, minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. 2° Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; e[2], como isso resulta num absurdo de sistema – dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável – fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer coisa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas duas manifestações. Se essa Substância as transcendesse, isto é, fosse outra coisa, existisse à parte a sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para 3 realidades. – 3º Negando a realidade a ambos os elementos da Experiência, considerando-os apenas como a manifestação, não real mas ilusória, não única mas alguma, de uma transcendente e verdadeira e só Realidade. Temos assim três novos sistemas: o espiritualismo, ou materialismo, absoluto (idealista), o panteísmo puro (Spinoza) e o transcendentalismo.
O leitor reparou que o 1º dos sistemas citados tem duas formas – uma materialista, outra espiritualista. O mesmo acontece ao panteísmo e ao transcendentalismo. É que, por mais que abstractamente ideemos, realmente não temos outros modelos por onde idear senão espírito e matéria. Mesmo, portanto, que concebamos um Transcendente, inconscientemente e involuntariamente o teremos de conceber como feito à imagem da matéria ou à semelhança do espírito. Assim temos um panteísmo materialista e um panteísmo espiritualista. O primeiro – o de Spinoza — é o que enterra o que Spinoza, não se sabe porquê, chama Deus nos seus
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atributos. Estes são como que o corpo de Deus, mas para além desse corpo Deus não é nada. É só o corpo de si próprio. Vê-se que o modelo é materialista. – O panteísmo espiritualista admite Deus substância de tudo, mas, para além de ser matéria e espírito, Deus é Deus, ele próprio; é a substância dos dois elementos da experiência, mas existe em si próprio, para além, e distintamente, desses dois elementos. Se houvesse sido pensado coerentemente, e despidamente de influências da teologia cristã, teria sido este o sistema de Malebranche.
Com o transcendentalismo acontece o mesmo. Importa fixar bem a diferença entre o panteísmo e o transcendentalismo. Para o panteísta, de qualquer das 2 espécies, matéria e espírito são manifestações reais de Deus, exista ele (panteísmo espiritualista) ou não (panteísmo materialista) além das duas manifestações. |extra. (No panteísmo espiritualista a matéria pode ser real e transitória, considerando essa como característica sua.)| Para o transcendentalista matéria e espírito são manifestações irreais de Deus, Deus manifestando-se como a ilusão, o sonho de si próprio. – Dos transcendentalistas o transcendentalista materialista (Schopenhauer, ou Hartmann) a essência real, de que as coisas são a ilusão, é qualquer coisa vaga cujo carácter essencial é ser inconsciente; como a consciência é a base dos sistemas espiritualistas, temos aqui um sistema anti-espiritualista, materialisticamente portanto, porém nebulosamente que o seja. – O transcendentalismo espiritualista representa a hipótese contrária: {…}
Um outro sistema pode, porém, surgir, limite e {…} da metafísica. Suponha-se que a um transcendentalista qualquer esta objecção se faz: o Aparente (matéria e espírito) é para vós irreal, é uma manifestação irreal do Real. Como, porém, pode o Real manifestar-se irrealmente? Para que o irreal seja irreal é preciso que seja real: portanto o Aparente é uma realidade irreal, uma contradição realizada. O Transcendente, pois, é e não é ao mesmo tempo, é uma coisa à parte e não-à parte da sua manifestação. – Vê-se que este sistema é não o materialismo nem o espiritualismo mas sim o panteísmo, transcendentalizado; chamemos-lhe pois o transcendentalismo panteísta. Há dele um exemplo único eterno. É essa catedral do pensamento – a filosofia de Hegel.
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O transcendentalismo panteísta envolve e transcende todos os sistemas: matéria e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo tempo, Deus e não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a matéria e o espírito existem como que não existem, porque existem e não-existem ao mesmo tempo. Por isso que a essência do universo é a contradição – a irrealização do real, que é o mesmo que a realização do irreal – uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto mais contraditória. (É verdade que a matéria é material, e o espírito espiritual; mas mais divinamente certo que a matéria é espiritual, e material o espírito.) A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo.
[1] mais /outros\
[2] e /ora\
Apontamentos manuscritos preparatórios da secção «VI» do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico», in A Águia, 2ª série, nos 9, 11, 12, Porto, Setembro, Novembro, Dezembro de 1912, pp. 86-94, 153-157, 188-192.