Identificação
[BNP/E3, 103 – 11–16]
Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação do que estas expressões, e especialmente a extraordinária primeira, contêm. Mas não é só para amostras de elevação que as trouxemos a este raciocínio. É, antes, para provas de originalidade. Aquele modo de dizer peculiar, aquela especial atitude verbal ante a própria, originalíssima, inspiração, não se relacionam com modo-de-expressão alguém que ainda nesta terra a unisse. Não queremos com isto dizer – mas também não afirmamos nada em contrário – que o modo-de-expressar isabeliano, o romântico seja afim a este. A nós parece-nos, mas releguemos isso para o nosso subjectivismo. O que desejamos apontar é a originalidade, a novidade destas outras expressões. E se neste ponto um leitor {…} nos objectar, {…} que não sente a elevação ou a originalidade dos exemplos que apontámos, não há senão que responder-lhe, virando-nos[1] para os desejos de mais raciocínios, como Turner ao indivíduo que disse que não sentia o colorido do seu pôr-do-sol: E não tem pena de o não sentir?
Resta o terceiro ponto: a grandeza. Haverá aqui, também, analogia? Tanto quanto a juvenilidade da nossa corrente literária permite a aproximação, a analogia não nos parece menos flagrante. Como vários, a nova poesia portuguesa tem de percorrido apenas o seu primeiro estádio, tendo há muito pouco começado a entrar no segundo. De modo que, completa já quanto ao que constitui originali-{…}
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e elevação, o facto de não ter atingido ainda a idade em que costumam aparecer os grandes poetas, que é no meio do segundo, e ora apenas começado, estádio, inibe {…}. Mas com o 1º estádio, comparando-o aos estádios respectivos das épocas anteriores que nos servem de |padrão|, alguma coisa se poderia já concluir. E com efeito, alguma coisa se conclui. Porque André Chénier e Chateaubriand no que poeta, no 1º estádio do grande período francês, e Spenser e os poetas, inferiores a ele, Sidney e outros têm análogo {…} em Guerra Junqueiro, na fase da Pátria e de Os Simples, em António Nobre, e outros, como Lopes-Vieira e António Correia d’Oliveira nas suas primeiras fases. Ora nesta comparação não ficamos mal. Como o 1º estádio Inglês, o nosso 1º estádio distingue-se pelo destaque de uma obra extraordinária. Ali é a Faerie Queene de Spenser, aqui é a Pátria de Junqueiro. É curioso notar o que ambos poemas versam, alegoricamente assuntos patrióticos – escrito aquele, além de {…}, em glorificação da Rainha Isabel I, escrito este nos |fins| patrióticos que todos sabemos. E se é permissível dar mais algum valor à Faerie Queene do que à Pátria, não o é dar mais valor ao tom poético geral da época, e à sua originalidade do que à nossa (1890-1904) possui. – O estádio francês correspondente, ao André Chénier e o elemento poético de {…} E se em originalidade e {…} imaginativa a Faerie Queene sobrelevará à Pátria, fica-lhe aquém em intensidade, em espírito dramático, em construção e integralidade gerais.
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{…} é, então, sensivelmente inferior ao nosso primeiro estádio. Mesmo directamente o grande poema de Junqueiro, cuja grandeza a lúcida {…} do Sr. Joaquim Pedro d’Oliveira viu com justa apreciação) {…}. Descendo mesmo à comparação dos precursores, Antero de Quental nada tem de inferior a Rousseau, no que poeta, e é nitidamente superior a Wyatt e Surrey. De modo que tanto pelos percursores como pelas figuras do período, a nossa corrente literária, além de se apresentar em completa analogia com as correspondentes correntes literárias francesa e inglesa, não mostra tendência alguma para inferioridade no seu auge com respeito mesmo à grande corrente literária da Inglaterra isabeliana. E se nos apontarem, como último recurso diferenciador, que, nos dois períodos estrangeiros analisados, o poeta representativo do 1º período (Spenser; Chateaubriand-poeta) é superior ao respectivo precursor típico (Wyatt ou Surrey; Rousseau-poeta) apontamos que o Junqueiro de Pátria é, semelhantemente, superior a Antero de Quental. Spenser?! Decerto. Mil sonetos anterianos não perfazem, na balança da poesia, a intensidade, a imaginação essencialmente construtiva e integralizadora que produziu a Pátria. Com certeza, Antero é supremo; mas é como poeta que aqui o encaramos. De modo que se há analogias neste mundo, e coisas absolutas neste mundo, entre a nossa actual corrente literária e os períodos da França e Inglaterra, completos ou grandes períodos criadores, há sob o ponto de vista lógico, como constatado o ponto de vista, históricas analogias absolutas.
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Resta, agora, analisar os característicos das magnas épocas literárias em face da alma do povo que as produz. Se aqui a analogia continuar, será absoluta e perfeita. O 1º desses característicos que a analogia revela é a sua anti-tradicionalidade. Isto é flagrante no romantismo francês cuja quebra com o passado literário da França foi dos mais violentos e directos. Em Inglaterra, como o grande período literário foi o 1º pouca tradição havia com que quebrasse; mas ainda assim, a pouca tradição que havia era de acordo com a regularidade clássica, na tragédia, como o soneto de forma italiana, por exemplo, e havia, tradicionalmente, o límpido dizer inglês antigo. Tudo isto violaram os isabelianos: a tragédia de Shakespeare quebra aos pés toda a vida de sanidade clássica, o soneto shakespeariano consiste de 3 quadras sem conexão de rima ente si[2], e à limpidez do inglês antigo muda o euphuism isabeliano, cujo resultado, em Shakespeare, fez dizer a † que ele parecia ter tentado todos os estilos menos o |claro|. – Mas porque quebram estas correntes com a tradição? Porque essa tradição é contraria ao espírito nacional; porque é, ou estranha, como a tradição dos séculos XVII e XVIII em França, pseudo-greco-romana ou como a, meio-indicada, de respeito pela noble scene – como da tragédia em Inglaterra, ou simplesmente chã de mais para um movimento literário que, como já vimos, tem por natureza ter elevação e novidade – e isto reporta-se à citada simplicidade da tradição expressiva inglesa dos períodos pré-isabelianos. De modo que as magnas correntes literárias são anti-tradicionais por serem nacionais, por descerem ao fundo da alma nacional. Que as correntes francesa e inglesa de que tratamos
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sejam nacionais absolutamente, não preciso demorar: ninguém mais nacional do que Shakespeare em Inglaterra, do que Victor Hugo em França. – Mas há um 3º característico destas correntes. É o seu caracter não-popular. Como vimos, uma das tradições com que a corrente inglesa quebrou foi a antiga simplicidade da linguagem; nada mais anti-popular, e, de resto, nada mais afastado do povo, ao mesmo que tempo que expressando-lhe a alma, do que a literatura do período isabeliano. A mesma não-popularidade se sente na correspondente corrente francesa, ainda que menos nitidamente, por não divergir nisto da corrente literária anterior.
Vejamos se a nossa actual corrente literária nisto também se assemelha às que lhe vão servindo de |padrões|. Quanto à sua anti-tradicionalidade e à sua não-popularidade não pode haver dúvida nenhuma. O modo de exprimir dos nossos poetas contemporâneos – repute-se o leitor aos 2 exemplos acima dados – não pode ser nem mais arredado de qualquer tradição da nossa literatura, nem mais afastado do dizer vulgar. Houve, é certo, no princípio da corrente, em António Nobre, por exemplo, a afectação do dizer popular; e Lopes-Vieira, por exemplo, se afecta de forma perturbante: mas tudo isso passou depressa e é característico apenas da indecisão do princípio do primeiro estádio do nosso período literário. Resta – e aqui é que está o ponto capital – ver se a anti-tradicionalidade e a não-popularidade que os nossos actuais poetas apresentam se baseiam, como nos casos, citados, da França e da Inglaterra, num descer até à alma nacional e dar-lhe expressão, por nova
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e sincera, anti-tradicional, e por elevada, não-popular.
Quais são os característicos da nossa corrente literária? Opondo-os aos dos quinhentistas, mais fácil nos será medir.
[1] virando-nos /antes de nos virarmos\
[2] sem conexão de rima ente si /e sem um dado final\
Versão manuscrita de parte das secções «IV» e «V» do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Reincidindo», in A Águia, 2ª série, nº 5, Porto, Maio de 1912, pp. 137-144.