Fernando Pessoa
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Fernando Pessoa
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BNP-E3, 107 – 19–20
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BNP-E3, 107 – 19–20
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre "António" de António Botto]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 107 – 19–20]

 

Quanto mais artificial o prazer produzido, tanto mais alta a arte. Uma mayonnaise e um poema dão ambos prazer, e ambos são obras de arte – uma da culinária, outro da poesia. Mas o prazer que a mayonnaise dá está ligado a um instinto natural, que é o de comer, a um sentido directo, que é o gosto; ao passo que o prazer dado pelo poema não satisfaz instinto natural algum, nem se dirige a nenhum sentido, propriamente dito.

Steps over the senses into the intellect ...... A moral visa à felicidade. O asceta que se martiriza, não se dá prazer, por isso mesmo que se causa dor; essa dor, porém, ele não só suporta mas elege porque lhe vai dar – assim, pelo menos, ele crê – a felicidade futura.

 

De aqui se conclui que a obra de arte quanto mais elevada for, isto é, quanto mais visar ministrar um prazer artificial, tanto mais se aproximará, nos seus efeitos, da acção moral. A leitura de um drama de Shakespeare não só nos dá prazer de espírito, senão que nos deixa melhores. Por isso disse Goethe, e disse bem, que se contemplasse sempre certo busto de Júpiter, ficaria melhor.

 

A arte tenderá, pois, a ser mais alta na proporção em que se afaste de ministrar prazer natural, ou seja a instintos naturais. De aí o poder uma obra de arte ser obscena; mas não ser capaz de o ser uma obra de arte altamente concebida. Dirigindo-se a esferas puramente artificiais do espírito, espontaneamente dela serão expurgados os elementos que se dirigem a instintos naturais, e a sensualidade é dos mais naturais.

 

# Ora a novela admirável de António Botto mais admirável se revela em que trata uma rede complexa de coisas sensuais sem que numa só palavra intervenha a obscenidade, sem que a própria imoralidade surja, pois que, sendo drama, a imoralidade não pode ser buscada nas personagens, mas no resultado do enredo, na moral espontânea da fábula. Ora o resultado final da leitura de "António" é uma impressão de beleza, de tristeza, de {…} E nem a beleza nem a tristeza nem {…} são, juntas ou separadas, factores de imoralidade. Se alguém se sentir disposto à imoralidade depois de ler esta novela, sentir-se-ia disposto à imoralidade depois de ler um tratado sobre o cálculo diferencial.

 

[20r]

 

A obscenidade ou a imoralidade não ocorrem, senão episodicamente, a um grande artista. Pode uma grande obra de arte ser obscena ou imoral? Em princípio pode; mas ao autor de uma grande obra de arte a obscenidade e a imoralidade não ocorrem, e por isso o problema está prejudicado psicologicamente, na sua origem.

 

O problema complica-se pela diversidade de interpretações que se podem dar à palavra moral, como, aliás, a qualquer palavra abstracta. Uma obra de arte obscena ou quase-obscena pode ser considerada desde aceitavelmente obscena até repugnante – isto mesmo espontaneamente – por diferentes pessoas. Pela mesma razão um poema admirável cantando as ideias republicanas não produz num monárquico uma impressão de perfeito prazer, a não ser que ele seja tão desprendidamente esteta que isso o não afecte, e nesse caso corre o risco de não ser muito bom monárquico. Uma ode vibrante à Itália não entusiasma extraordinariamente um inglês. Uma ode vibrante à França entusiasmará um alemão ainda menos. E aqui está como elementos absolutamente extra-artísticos podem perturbar a acção de uma obra de arte.

 

Que segue de aqui? Que as obras de arte são feitas para quem seja capaz de as compreender artisticamente, e não directamente para o público em geral. Os artistas escrevem só para artistas: é essa a tragédia do génio.

 

Desde que se compreenda isto, desde logo o problema da arte e da moral fica esclarecido. Os artistas olham só ao lado artístico de uma obra de arte: não os afecta, portanto, qualquer outro aspecto dessa obra.

 

Se, porém, o artista se propõe escrever para o grande público, que não é de artistas, isto é, se o artista se propõe, por esse mesmo propósito, deixar de ser artista, então a sua obra cai sob outra alçada, e deixa para ela de existir a tolerância estética. A sua obra é já propaganda, e não arte, por arte que contenha. Ora as condições sociais da propaganda são diversas das condições sociais da arte.

 

O verdadeiro artista não deve inserir elementos perturbadores em obras destinadas ao grande público, porque o grande público é uma criança, e escrever  obscenidades para o grande público é a mesma coisa que escrevê-las para crianças, o que só um louco moral se proporá fazer.

Notas de edição

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria
Contemporâneos

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Locais
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Nomes relacionados

Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 353-355.
Exposições
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