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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 72 – 1–9
Imagem
António Botto e o Ideal Estético em Portugal
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
António Botto e o Ideal Estético em Portugal
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 72 – 1–9]

 

ANTÓNIO BOTTO E O IDEAL ESTÉTICO

EM PORTUGAL

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António Botto é o único português, dos que hoje conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. Com um perfeito instinto ele segue o ideal a que se tem chamado estético, e que é uma das formas, se bem que a ínfima, do ideal helénico. Segue-o, porém, a par de com o instinto, com uma perfeita inteligência, porque os ideais gregos, como são intelectuais, não podem ser seguidos inconscientemente.

A obra de António Botto, no que realmente típica, resume-se, por ora, no seu último livro, Canções. Que essa obra se distingue com facilidade da obra de qualquer outro poeta, português ou estrangeiro – todos, que possam ver, o podem ver. Já não é tão fácil explicar em que consiste, distintivamente, essa diferença. Algum interesse haverá em determiná-lo.

 

Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.

Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.

Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita: é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.

Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser. Assim, todo o corpo é imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a vida é imperfeita porque, durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço; toda a compreensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores fronteiras confina com o incompreensível que a cerca. Quem sente desta maneira a imperfeição da vida, quem assim a compara com ela-própria, tendo-a por infiel à sua própria natureza, força é que sinta como ideal um conceito de perfeição que se apoie na mesma vida.

 

[2r]

 

Este ideal de perfeição é o ideal helénico, ou o que pode assim designar-se, por terem sido os gregos antigos quem mais distintivamente o teve, quem, em verdade, o formou, de quem, por certo, ele foi herdado pelas civilizações posteriores.

Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior – inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade. É esta inferioridade essencial que, neste critério, dá às coisas a imperfeição que elas mostram. Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a essência do que é vil é não poder durar; desaparece a juventude porque é um episódio desta vida passageira; murcha a beleza que vemos porque cresce na haste temporal. Só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o ideal a que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós.

Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não-existente, porque a não-existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por ilusória; não já imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita; não já imperfeita, como para os cristãos, por ser vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera aparência, absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de imperfeição que nasce aquela forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida no budismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia muito antes daquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase todas as confissões. Como, porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente apareceram, poderemos ser imprecisos, porém não seremos inexactos, se dermos a este ideal, por conveniência, o nome de ideal índio.

 

Pela própria natureza do seu ideal, é a civilização helénica essencialmente a civilização artística. Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objectiva, beleza acrescentada à que há no mundo. Para que esta actividade lembre e preocupe, é mister haver um critério objectivo de beleza ou de perfeição. Ora, dos três critérios de perfeição, só o dos gregos tem objectividade. Que impulso natural pode ter para criar obras de arte, formas que pertencem ao mundo e à vida, quem, como o cristão, tem o mundo por pó e mal, a vida por vileza e pecado, ou quem, como o místico da Índia, tem toda a Aparência por ilusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira?

 

[3r]

 

{…} não procedesse um instinto irreprimível nas comunidades civilizadas, nunca teria havido arte índia, nem cristã. E a arte cristã, por certo, ter-se-ia aproximado mais da imperfeição estrutural e formal da arte índia, se não fosse que o helenismo é um elemento componente do cristismo, e que a arte dos povos cristãos, tendo a dos gregos por exemplar, se guia, nas suas manifestações superiores, pelos princípios assentes como fundamentais pelo preceito e o exemplo dos  clássicos.

 

Há, porém, uma outra razão, esta mais emotiva e profunda, para que o ideal helénico seja, de todos, o que mais directamente conduz à criação artística.

O cristão é metafisicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquela perfeição divina em que não há mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para ele um mal-estar transitório. Ao índio nada dói o haver mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em êxtase o Todo a que nem o Nada falta. É metafisicamente feliz também.

Outra é a vida espiritual do homem de ideal helénico. Esse vê que a vida é imperfeita, porque é imperfeita; porém não rejeita a vida, porque é na mesma vida que tem postos os olhos. Mesmo que veja no mundo dos deuses aquela beleza suprema, pela qual anseia, anseia também por essa beleza nos homens. "A raça dos deuses e dos homens é uma só", disse Píndaro; a uns deve pertencer o que aos outros pertence. Por isso, dos três idealistas, é o heleno o único que não pode rejeitar aquela vida a que chama imperfeita. O seu ideal é, portanto, humanamente o mais trágico e profundo.

De aqui o que resulta? A carência de uma fé religiosa, de uma confiança, moral ou metafísica, no Além, reduz as almas vis ou à materialidade animal, ou à estéril ficção de um milénio do estômago – o socialismo, o anarquismo, e todos os plutocratismos invertidos que se lhes assemelham; por isso os mais cépticos dos gregos e dos romanos nunca pretenderam que se destruísse a fé religiosa das plebes, por estulta e irrisória que a julgassem. Se é este, porém, o efeito do ideal puramente objectivo nas almas inferiores, nos espíritos superiores, que são os susceptíveis de criar, o efeito é outro. Não podendo buscar consolação espiritual na religião, força é que a busquem na vida. Como, porém, encontrá-la na vida, se a vida é imperfeita, e o imperfeito, por sua natureza, não pode constituir ideal, porque o ideal é perfeição? Aperfeiçoando a vida, para que a sua imperfeição lhe doa menos. Aperfeiçoando-a como? Objectivamente não pode ser, porque a acção humana sobre o universo é menos que limitadíssima. É portanto só subjectivamente que se pode aperfeiçoá-la, aperfeiçoando o conceito e o sentimento dela. A consolação e o repouso, no que podem atingir-se, só a Arte, portanto, os pode dar. A Arte é, com efeito, o aperfeiçoamento subjectivo da vida.

A calma, o equilíbrio, a harmonia e o repouso, característicos distintivos, com outros, que os não contradizem, da arte grega, provam bem que não é abusiva a atribuição desta íntima direcção lógica ao caminho do instinto helénico para o ideal estético absoluto.

 

[4r]

 

Quando o heleno pretende pôr em arte o seu ideal, isto é, quando o ideal helénico assume o aspecto criador ou activo, são três as formas de manifestação por que se revela.

Na primeira, e mais alta, dessas formas, o heleno, vendo que a vida é imperfeita, busca criar, ele, a perfeição, substituindo a arte à vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou toda a vida ou um aspecto supremo da vida. É esta a forma intelectual e construtiva do ideal estético absoluto; Homero e Virgílio dos antigos, Dante e Milton dos modernos, são os representantes máximos dela. As obras destes poetas mostram a preocupação severa da perfeição absoluta, revelada tanto na estruturação harmónica de um conjunto pleno de significação, quanto na execução escrupulosa de todos os elementos seus componentes.

Na segunda, e média, dessas formas, o heleno, sentindo que a vida é imperfeita, busca aperfeiçoá-la em si, vivendo-a com uma compreensão intensa, vivendo de dentro, com o espírito, a essência do transitório e do imperfeito. É esta a forma emotiva e dolorosa do ideal estético absoluto; foi este conceito da vida o que criou a tragédia, desconhecida, como espécie emotiva e estética, antes dos gregos.

Na terceira, e ínfima, dessas formas, o heleno, vendo e sentindo vagamente a imperfeição das coisas, porém sem força espiritual, quer para construir uma perfeição que as substitua, quer para se consubstanciar emotivamente com a sua imperfeição, decide aceitá-las como se fossem perfeitas, escolhendo em cada uma aquele momento, aquele gesto, aquela passagem que de tal modo encheu a nossa capacidade de sensação que naquele momento, naquele gesto, naquela passagem, a sentimos perfeita. É esta a forma sensual do ideal estético absoluto; forma débil, porque não a energiza uma reacção da inteligência, vazia, porque a emoção lhe não dá corpo, mas, por isso mesmo, porque é estética e mais nada, propriamente classificável de ideal estético, sem qualificação.

 

[5r]

 

De que maneira, por que processo reconheceremos o esteta, propriamente tal, na sua obra? Quais são os sinais necessários da aplicação do ideal estético? Como distinguiremos, se se trata de poetas, o esteta do poeta simples, que canta simplesmente o prazer e a vida, porque lhe não cabe mais na alma? Como distinguiremos o esteta do cristão revoltado, que procura o pecado só porque é pecado, e blasfema, embora subtilmente, só para ter a consciência da blasfémia? Em outras palavras, como distinguiremos o esteta do satânico menor?

A distinção não apresenta dificuldade, desde que nos representemos com clareza em que consiste necessariamente a aplicação activa do ideal estético.

Se o ideal estético consiste na consideração vaga de que a vida é imperfeita, e que só é perfeita, num momento feliz, a nossa sensação dela, força é que essa consideração não atinja um alto grau de absorção metafísica ou moral; porque, se for altamente metafísica, haverá consciência de mais para poder haver ilusão, e, se for altamente moral, haverá dor de sobra para que a ilusão possa agradar.

O primeiro característico da arte do esteta é pois a ausência de elementos metafísicos e morais na substância da sua ideação. Como, porém, os ideais helénicos procedem todos de uma aplicação directamente crítica da inteligência à vida, e da sensibilidade ao conteúdo dela, essa ausência de metafísica não será uma ausência de ideias metafísicas, nem essa ausência de moral uma ausência de ideias morais. Há uma ideia que, sem ser metafísica nem moral, faz, na obra do esteta, as vezes das ideias morais e metafísicas. O esteta substitui a ideia de beleza à ideia de verdade e à ideia de bem, porém dá, por isso mesmo, a essa ideia de beleza um alcance metafísico e moral. A célebre "Conclusão" da Renascença de Pater, o maior dos estetas europeus, é o exemplo culminante desta atitude.

Nisto se distingue a obra do esteta da obra do artista simples, em quem os elementos metafísicos e morais são ausentes, não por diferença de ideal, senão por ausência dele.

Se, porém, o esteta substitui a ideia de beleza à ideia de verdade e à de bem, o certo é que, por isso mesmo que as substituiu por outra, se não interessa pelas ideias de bem e de verdade. Não é por isso, propriamente, nem céptico nem imoral; o propósito de ser céptico revela uma preocupação metafísica, o de ser imoral uma preocupação ética, e o carácter negativo de ambas as preocupações não as torna menos preocupações. Nisto claramente se distingue o esteta do cristão decadente, como Baudelaire ou Wilde, do crítico de arte entusiasta, como Ruskin, do místico laico, como Anatole France, cujo socialismo o traiu, e tantos outros.

 

Se tivermos presentes estas considerações na análise do livro de António Botto, não nos será difícil determinar que esse livro representa uma das revelações mais raras e perfeitas do ideal estético, que se podem imaginar.

 

[6r]

 

Que a substância do livro é altamente intelectual, revela-o o estudo cuidado da forma e do ritmo, a escolha severa dos momentos representativos, a falta de espontaneidade emotiva que em cada verso se manifesta. Tudo é pensado, tudo é crítico e consciente. Não há, porém, como seria de esperar de uma inteligência tão constantemente empregada, metafísica nenhuma, nem explícita nem implícita, interesse nenhum pelas ideias como tais. É uma inteligência que dirige, porém não pensa; que compreende, porém não aprofunda; que guia, porém não se preocupa. Nem positivamente, nem negativamente, sugere o livro Canções qualquer metafísica. Duas ideias centrais governam a inspiração do poeta, e lhe servem de metafísica e de moral. São as ideias de beleza física e de prazer. A análise do conteúdo dessas duas ideias, tais quais se nos apresentam nas Canções, revelará o esteta inequivocamente. No modo como apresenta a primeira delas, o poeta afasta-se de toda a espécie de moralidade; no modo como apresenta a segunda, de toda a espécie de imoralidade.

Das três formas, que podemos conceber, da beleza física – a graça, a força, e a perfeição –, o corpo feminino tem só a primeira, porque não pode ter a beleza da força sem quebra da sua feminilidade, isto é, sem perda do seu carácter próprio; o corpo masculino pode, sem quebra da sua masculinidade, reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos dos deuses, se existem, é dado tê-la. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo instinto estético, cantará, como poeta, só o corpo feminino. Essa atitude representa uma preocupação exclusivamente moral. O instinto sexual, normalmente tendente para o sexo oposto, é o mais rudimentar dos instintos morais. A sexualidade é uma ética animal, a primeira e a mais instintiva das éticas. Como, porém, o esteta canta a beleza sem preocupação ética, segue que a cantará onde mais a encontre, e não onde sugestões externas à estética, como a sugestão sexual, o façam procurá-la. Como se guia, pois, só pela beleza, o esteta canta de preferência o corpo masculino, por ser o corpo humano que mais elementos de beleza, dos poucos que há, pode acumular.

Foi assim que pensaram os gregos; foi esse pensamento que Winckelmann, fundador do estetismo na Europa, descobrindo-o neles, reproduziu, como no passo célebre que Pater transcreveu, e que parece feito para servir de prefácio a um livro como Canções:

"Como é confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral, assim, tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens, raras vezes têm um instinto imparcial, vital, inato da beleza na arte. A pessoas como essas a beleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina."

Ora é este conceito, puramente estético, da beleza física que, como todos sabem, porque escandalizadamente se notou uma das duas ideias inspiradoras das Canções.

 

[7r]

 

Disse eu que António Botto se afasta de toda a moralidade no modo por que canta a beleza física, e que se afasta de toda a imoralidade no modo por que canta o prazer. De que modo canta ele o prazer? Que modo há de cantar o prazer que, sem ser moral (porque, se o fosse, estaríamos fora do caso estético), se afasta da imoralidade?

Para com o prazer há três atitudes possíveis – aceitá-lo, rejeitá-lo, aceitá-lo com moderação. A cada uma destas atitudes correspondem graus vários de moralidade e de imoralidade, porque pode haver moralidade no modo de aceitar o prazer, e imoralidade na maneira de rejeitá-lo. Aqui, porém, trata-se de quem aceita o prazer, e só o prazer; não temos portanto que considerar as outras hipóteses.

Aceite o prazer, e só prazer, de que modos pode ele ser aceite? Pode ser aceite como alegria, ou como forma de alegria, e é esta a maneira moral, porque é a natural, de aceitar o prazer. Pode ser aceite como excitação, como, por assim dizer, a única forma agradável da dor, pois que toda a excitação – tomada a palavra no sentido vulgar, e não no fisiológico – tem um fundo de dor; e é esta a maneira imoral, porque é a anti-natural, de aceitar o prazer. Pode, finalmente, ser aceite simplesmente como prazer, como, em sua essência, nem alegre nem triste, porém a única coisa que pode encher o vácuo absurdo da existência. Deste conceito de prazer não se pode dizer que seja moral nem imoral, logo que se não esqueça que se está considerando o prazer só, isolando-o de qualquer elemento da vida.

Quem leia com atenção normal o livro Canções, não tardará que veja que é este último o conceito que António Botto forma do prazer, que é neste sentido de compreendê-lo que ele o canta. Canções é um hino ao prazer, porém não ao prazer como alegria, nem como raiva, senão simplesmente como prazer. O prazer, como o poeta o canta, nem serve de despertar a alegria da vida, nem de ministrar um antídoto a uma dor substancial constante; serve apenas de encher um vácuo espiritual, a ser conceito de vida a quem não tem nenhum. Há neste livro, sim, a intuição do fundo trágico do ideal helénico, do fundo trágico de todo o prazer que sabe que não tem além. Essa intuição, porém, se é do que é trágico, não é trágica em si. Este prazer não tem a cor da alegria, nem a da dor. "A alegria", disse Nietzsche, "quer eternidade, quer profunda eternidade". Não é, nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não-ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora de relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento.

 

Resulta destas considerações, que me esforcei por fazer lúcidas e concisas, a determinação exacta de que António Botto, no seu livro Canções, se revela um dos tipos mais perfeitos e mais íntegros do esteta, que se podem imaginar.

 

[8r]

 

Que importância tem este facto? A de representar uma raridade. O tipo perfeito do esteta é raríssimo na civilização cristã, ou de origem cristã, e mais que raro, porque, até às Canções, desconhecido, em Portugal. A razão dessa raridade, quer em toda a Europa, quer em Portugal, e o valor que nela haja, são relativamente fáceis de compreender.

O ideal estético é, como se viu, uma das formas – a mais ténue e vazia – do ideal helénico; mas, por isso mesmo que é a mais ténue e vazia delas, é a mais explicitamente representativa daquele ideal. Para que apareça um tipo de esteta é necessário um meio social análogo ao meio social helénico. Ora o meio social europeu, se é certo que modernamente, e em algumas das suas manifestações, de certo modo se aproxima, tanto quanto pode ser, do meio social da Grécia antiga, é, em todo o caso, radicalmente diferente dele. Segue que o aparecimento na Europa moderna de um tipo íntegro de esteta só pode dar-se por um desvio patológico, isto é, por uma inadaptação estrutural aos princípios constitutivos da civilização europeia, em que vivemos.

Este desvio patológico é, porém, no caso dos grandes estetas europeus o elemento predisponente, se bem que, por isso mesmo, radical, do seu estetismo; a ele se acrescenta uma mergência prolongada do espírito na atmosfera da cultura helénica, que lhe cria um perpétuo contacto, ainda que só intelectual, com a Grécia antiga e os seus ideais. Da acção deste segundo elemento sobre o primeiro o esteta desabrocha. São desta origem os estetismos de Winckelmann e de Pater, quase, em verdade os únicos tipos exactos do esteta que a civilização europeia pode apresentar. Como, porém, este estetismo tem uma base cultural, resulta que tem a plenitude e a largueza que distinguem todos os produtos culturais, em contraposição aos naturais seus semelhantes, e por isso de algum modo transcendem a estreiteza específica do ideal estético.

Como os elementos culturais são inteiramente negativos na obra de António Botto, vemo-nos forçados a assentar em que o seu estetismo nasce de um simples desvio patológico, sem solicitação cultural eficiente. Este processo de ser esteta apresenta uma singularidade notável: é um desvio patológico sem desequilíbrio, porque todos os ideais gregos (e portanto o estético, que é um deles) são essencialmente equilibrados e harmónicos. Ora um desvio patológico equilibrado é uma de duas coisas – ou o génio ou o talento. Ambos estes fenómenos são desvios patológicos, porque, biologicamente considerados, são anormais; porém não são só anormais, porque têm uma aceitação e um acção sobre o exterior, tendo, portanto, um equilíbrio com ele. A esse desvio equilibrado chamar-se-á génio quando é sintético, talento quando é analítico; génio quando resulta da fusão original de vários elementos, talento quando procede do isolamento original de um só elemento.

 

[9r]

 

{…} isolamento original de um só elemento. A dentro do ideal estético, os casos de Winckelmann e de Pater representam o génio, porque o processo cultural de ser esteta é, por sua própria natureza, sintético; o caso de António Botto representa o talento, porque o ideal estético, dada a sua estreiteza e vacuidade, representa já o senso estético isolado de todos os outros elementos psíquicos, e, no caso de António Botto, esteta espontâneo e nato, mesmo dos elementos culturais, que podem contribuir para formá-lo.

Temos, pois, por demonstração severamente conduzida, que o livro Canções é uma obra de talento, tendo, além disso, o valor accessório e especial de ser o único exemplo, que eu saiba, na literatura europeia do isolamento instintivo e absoluto do ideal estético em toda a sua vazia integridade.

 

Àparte este valor, que pertence àquela obra em absoluto, isto é, como obra e não como obra em português, o livro Canções tem, para nós em Portugal, um outro valor, já de ordem relativa. É que é o único exemplo em Portugal da realização literária, de qualquer espécie, do ideal estético. Artistas tem havido em Portugal; estetas só o autor das Canções. Só a dois outros poetas portugueses pode parecer que cabe, pelo menos de certo modo, a designação de esteta, se é que uma designação como esta, tão claramente limitadora, pode ser aplicada com qualificação. Esses dois poetas são Cesário Verde e Eugénio de Castro; são ambos maiores que António Botto, nenhum deles porém é um esteta. O primeiro, um dos maiores poetas do século dezanove, tem realmente uma objectividade quase helénica, revela na verdade uma indiferença aos conceitos metafísicos e morais, que não torna absurda a lembrança, a seu respeito, do ideal estético; porém a força da inteligência empregada, a tensão emotiva íntima, a metafísica claramente implícita na sua objectividade especial fazem com que a sua obra transcenda a estreiteza e a vacuidade do puro estetismo. O segundo é um misto desconcertante de esteta, de decadente e de imbecil; por onde se conclui que não é puramente um esteta, e quem não é puramente esteta, não é esteta, porque o ideal estético,  se é estreito, é por isso mesmo exclusivo e definido.

 

São estas as considerações que o livro Canções e o seu autor sugerem a uma crítica aplicada raciocinadamente. Uma crítica mais particular do livro não cai no âmbito deste breve estudo, nem porventura haveria interesse em fazê-la.

 

FERNANDO PESSOA

Notas de edição

Versão dactilografada do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Antonio Botto e o Ideal Esthetico em Portugal», in Contemporânea, vol. I, nº3, Lisboa, Julho de 1922, pp. 121-126.

Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2234

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Bibliografia
Publicações
Pauly Ellen Bothe, Apreciações literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, pp. 323-326. [Em aparato genético.]
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