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Fernando Pessoa - Literary Theory

This digital edition of texts by Fernando Pessoa deals with the set of poetic theorizing writings from hisArchive and brings together essays, comments, notes, sketches and fragments about literature from the Portuguese author. The documents transcribed are in Fernando Pessoa’s Archive in the custody of the National Library of Portugal, with quota E3. All facsimiles are accompanied by a critical lesson and a paleographic transcription, which is available for download in the “PDF” field.

 

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14-1 – 89-90
BNP/E3, 14-1 – 89-90
Identificação
"A Literatura da Decadência" - Notas ao livro de Max Nordau.

[BNP/E3, 141 – 89-90]

 

"A Literatura da Decadência" -

Notas ao livro de Max Nordau.

 

Outrossim se engana o psiquiatra alemão quando contesta ao poeta o vago do pensamento, fazendo distinções, para o caso fúteis, entre pensamento são e pensamento mórbido - o primeiro próprio, no dizer dele, do verdadeiro e são poeta, por exemplo Goethe, o segundo do poeta degenerado.

Em arte porém não se trata, nem da degenerescência do artista como homem, não da sua degenerescência mais localizadamente, como pensador ou |sentiente|. Trata-se apenas da sua degenerescência única e exclusivamente como artista. O fundo da sua personalidade e do seu pensamento pode ser, quanto se quiser, mórbido e anormal[1]: nada disso esteticamente importa. É da sua forma - forma psíquica - de estetizar esse pensamento, e na sua {…} que o crítico de arte trata.

Um sentimento em si mórbido pode ser higidamente tratado por um artista; o homem será doente e o artista são. Os sentimentos ins-

 

[89v]

 

piradores não são limitados por assuntos morais, naturais ou {…}. |Baudelaire é um grande poeta e um homem emocionalmente doente| {…}

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Um sentimento em si vago e indefinido pode ser tema inspiracional de um poema, de um quadro ou de uma |partitura|. Grande parte dos sentimentos inspirados dos artistas é indefinida e vaga. A saudade, o {…}, o horror da morte, {…} da vida, a sensação {…} do mistério - nenhum destes temas supremos de inspiração é coisa clara, nítida e exaustivamente analisável. Emocionalmente porém é claro. Ora a arte é apenas a substituição da inteligência à emoção {…}. O que deve sê-lo porém é o modo como o poeta, o artista ou o compositor musical o concebe para que artisticamente o interprete. O que não pode ser vago e indefinido é o pensamento do poema, quadro ou partitura em si. Aí é que vem a parte do artista. A suprema arte é justamente a concretização do abstracto, a nitidização do indefinido, a lucidização do obscuro no símbolo, ideia ou {…} basilar à obra de arte.

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[90r]

 

Três modos há de tornar clara uma ideia, por vaga e indefinida que em si seja: o símbolo, a adformação e a imagem. Por adformação[2] entendo a adaptação basilar da forma ao fundo; ora a forma duma emoção é o som expresso pelos órgãos visuais (e por análise, o som em si.) Daí ser a música a arte da adformação. O primeiro é essencialmente o método das artes visuais; o segundo é o método da música, o terceiro o da poesia, conquanto a poesia use todos três.

Mas o artista são, use qualquer dos 3 métodos, nota-se por uma particularidade: tornar lucida a ideia, por vaga que ela seja.

 

O pintor, por exemplo, para simbolizar qualquer {…} tem, por ser pintor, de tornar lúcido, por visual ter de o tornar, o assunto do seu quadro. O compositor musical para simbolizar qualquer coisa tem, por ser músico, de a tornar lúcida, por dar-lhe a forma representativa da emoção. Para poder compor uma |partitura| tem de a fazer tomar corpo na sua inspiração melódica – e tomar corpo é definir-se, tornar-se de certo modo lúcida, |flagrante|. E o poeta, finalmente, para representar qualquer assunto inspiracional, tem de o reduzir mentalmente a uma imagem, a qualquer coisa de espiritualmente material e |táctil|, de interiormente viva e vivida.

 

[90v]

 

E a seguir – como lhe é dado fazer – o método mais peculiar do pintor, ou o mais peculiar do músico, tem de manter na poesia a lucidez que a eles – pintor e músico – é forçoso manter nas suas artes respectivas para que sejam artistas e não alienados ou idiotas.

 

É caso de distinguir, como apontasse e fizesse Edgar Poe, a expressão da obscuridade da obscuridade de expressão. O obscuro em si lucidamente expresso permanece o obscuro em si; o obscuro não claro, mas claramente obscuro. A arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro – porque o que é obscuro de essência só por erro de interpretação podia deixar de o ser – mas torna-lhe clara a obscuridade. Assim Antero de Quental dá, nos seus sonetos, a mais consumada expressão poética aos assuntos mais abstratos e obscuros. Torna-lhes luminosa a obscuridade; vemos mais lucidamente do que nunca quanto essa obscuridade é obscuridade, quando essa obscuridade é obscura. O mais alto poeta, na mais alta expressão que dê ao mistério do universo, não no-lo torna claro; o que nos torna claro – na proporção em que a sua arte é sublime – é o quanto esse mistério é mistério. Exigir mais do poeta, e não saber o que ao poeta se deve exigir.

 

[1] anormal /ou estranho\

[2] af/d\formação

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4249
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Publicação parcial: Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: heritage et création, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 495-497.
Publicação integral: Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, Edição de Jerónimo Pizarro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 380-381.