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Fernando Pessoa - Literary Theory

This digital edition of texts by Fernando Pessoa deals with the set of poetic theorizing writings from hisArchive and brings together essays, comments, notes, sketches and fragments about literature from the Portuguese author. The documents transcribed are in Fernando Pessoa’s Archive in the custody of the National Library of Portugal, with quota E3. All facsimiles are accompanied by a critical lesson and a paleographic transcription, which is available for download in the “PDF” field.

 

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14-1 – 61-80
BNP/E3, 14-1 – 61-80
Fernando Pessoa
Identificação
"Não tem resposta…"

[BNP/E3, 141 – 61-80]

 

"Não tem resposta…"

______________________________________________________

Cuidei eu, meu querido José Pacheco, que podia quebrar impunemente, pelo menos nas páginas da Contemporânea, a tradição crítica nacional. Essa tradição é a da inveja, quanto aos sentimentos, e da má-criação, quanto à expressão deles. Aplica-se com largueza, porém com mais estrita referência torna seus objectos os que, nossos pares em idade ou[1] nossos semelhantes no ofício artístico podem ser nossos concorrentes (próximos) à imortalidade mortal dos cabeçalhos jornalísticos

Poucos, se alguns, têm falhado a esta tradição arraigada. Nunca tirou pé dela Camilo. Eça cortejou-a sempre. Fialho viveu dela. São excepções a reciprocidade comercial do elogio mútuo, e os que, por consagração excessiva, não fica bem pôr em questão. Ainda assim, há restrições naturais

 

[62r]

 

a estas excepções generosas. O elogio mútuo cessa quando deixa de ser exactamente mútuo – no grau como na qualidade. Aos que aqui consagram é de uso atacar quando morrem. É o grande sinal de independência – o único – que exorna a crítica portuguesa: o desprezo científico (a única manifestação científica entre nós) por o de mortuis nil nisi bonum da sentimentalidade clássica.

Fiz mal em querer ser diferente, não só pela presunção que isso revela, senão também pela inadaptação ao meio, e portanto a degenerescência, que representa. § Sendo da mesma geração que António Botto, trabalhando, como ele, também em verso, não tendo assegurado que ele fizesse de mim um elogio público e compensador, o meu dever nacional – patriótico, quando era, sendo eu inábil porém bom português, de o insultar em linguagem escrita ou, sendo igualmente lusitano porém mais hábil, de colocar sobre ele todo o peso que houvesse no meu silêncio.

 

[63r]

 

Aconteceu-me, porém, no assunto uma daquelas fatalidades que ordinariamente sucedem aos espíritos morbidamente lógicos, e incompetente, pela escassez dinâmica de elementos inconscientes[2], para uma adaptação perfeita ao meio em que viveu. Como achei digno de louvor[3], escuso de dizer artisticamente – de que outra maneira haveria de ser? – o livro Canções, e me parecesse que havia a tendência injusta para ter esse livro por menos artisticamente singelo do que é, achei que me cumpria elogiá-lo, visto que o elogio é ainda – em qualquer tradição humana desconhecida em Lisboa – a forma natural de manifestar o apreço. Errei. Aqui, neste meio artístico que nos cerca, o modo de manifestar o apreço é negar o valor, e a forma usual de dizer bem de alguém, que sentimos que o merece, é calarmo-nos a seu respeito. Não será lógico, porém é nacional, e de sobra nos ensinaram os tradicionalistas que há verdades nacionais diversas das verdades universais. Esta é porventura uma delas.

 

[64r]

 

Sou pouco instintivo, e portanto intuitivo; é o vício necessário do temperamento do raciocinador. As faculdades de atenção e de vontade, as do juízo e da inteligência abstracta, normalmente[4] submissas ao impulso dos instintos e servindo apenas de esclarecedoras dele e suas orientadoras e auxiliares, assumem, nos temperamentos como o meu, um poder temperamental e tirânico. Nós, os raciocinadores-natos, querendo provar tudo, não convencemos ninguém, porque, sob a pressão mórbida do cérebro anterior demasiadamente activo, perdemos o[5] instinto de convencer (localizado, percebo, em regiões menos nobres do cérebro) por processos que a convicção se leva às almas, não pelo raciocínio, quanto à operação do espírito, e pela prova, quanto ao resultado dela, senão pela fé |cega| e absurda, quanto à disposição impulsora e pela afirmação dogmática e repetida quanto à sua manifestação (dela)[6].

Assim, tendo já ofendido as susceptibilidades dos meus concidadãos com o elogio de um poeta pouco mais novo que eu, a quem eu devia cumprir portanto que me esforçasse por deprimir e |envilecer|, acrescentei a esse crime[7]

 

[65r]

 

degenerativo, o lógico de ser lógico, a viciosa {…} de pretender convencer pela prosa e provar pela demonstração.

Não me desculpo, não me defendo. Confesso o meu erro, e se tão longamente insisto nele, e falo de mim, e que para confessar-me tenho que explicar-me, e para explicar-me não posso deixar-me inteiramente fora de explicação.

*

Não falta, nem sequer tarda, a manifestação, bem clara, bem nacional, bem normalmente antilógica, da reprovação pública a[8] minha insólita atitude. Tendo errado, e tendo, como vício de raciocinador, a tender para preferir confessar os erros a persistir teimosamente neles, quero deixar expresso o meu agradecimento, tanto ao meu amigo Álvaro Maia, que se promoveu a voz do público indignado, como a você, meu querido José Pacheco, que, para desagravo da opinião geral ofendida convidou para as páginas da sua revista o artigo em que, se é certo que eu sou contraditado sem lógica, e o artista sobre quem escrevi agraviado |pessoalmente|[9] sem culpa, o resultado público é contudo desagravo do insulto, escrito do qual, publicando o meu estudo, você, até certo ponto, se tornou responsável.

 

[66r]

 

Não creia, meu querido José Pacheco, que é por mero cortejo ou estéril galanteio literário, que assim o incluo, com Álvaro Maia, no meu agradecimento. Esse agradecimento é-lhe realmente devido. Nem, quando digo que convidou para as suas páginas o artigo em que Álvaro Maia respondeu a uma Manual Prático de Pederastia que eu não me recordo de ter escrito, nem no futuro, eu me permita escrever ironicamente ou atribuir-lhe qualquer boa-intenção que presumivelmente você não tenha[10] tido.

Propriamente falando, e pelas razões que posso dizer-lhe, o artigo de Álvaro Maia é uma espécie de colaboração entre ele e você. Ele escrevendo-o, e você publicando-o, colaboraram. Mas do mesmo modo – disse você modestamente – colabora você com todos quantos escrevem na Contemporânea. Não é justo para comigo se pensar assim. O caso do artigo de Álvaro Maia não é o de uma colaboração vulgar, e vou provar-lhe (Você e o público que desculpem[11]!) que o não é.   

 

[67r]

 

As opiniões expressas em um artigo assinado não são da responsabilidade da direcção da revista ou jornal que as insere; é-o tão-somente o tom do[12] artigo. Ora qualquer[13] publicação, periódica ou outra, tem forçosamente uma orientação qualquer, de certo modo definida. Com essa orientação tem o artigo inserto, assinado[14] que seja, que convir. Quando não convenha, haverá a culpar, ou a louvar, só das suas ideias o seu autor, da sua orientação, por certo, o director da publicação em que apareceu. Se alguém publicasse na Epocha um artigo vulgarmente cortês para com um protestante ou um judeu[15], com razão culpariam os leitores[16] daquele jornal, de certo modo o seu autor, certamente o sr. conselheiro Fernando de Sousa, alguém incapaz do agravo, que é puro exemplo hipotético. Se nas colunas da Batalha surgisse inesperadamente um escrito combatendo o uso quotidiano dos explosivos como argumento sociológico, o operariado consciente que orienta o seu espírito filosófico pelas lições daquele manual de pseudo-futuro, protestaria decerto, não tanto

 

[68r]

 

contra o autor do artigo, porém[17] mais vibrantemente, contra o director do periódico – que não sei quem seja, mas que servindo-me o caso e o jornal de simples hipóteses para exemplo, suponho incapaz de faltar assim aos seus princípios humanitários.

É a Contemporânea uma revista de arte e de literatura, e ninguém mais do que eu, meu querido José Pacheco, tem sido assíduo nos louvores a ela e a você, seu director. Não foi estabelecida – |salvo erro ou omissão, como se diz nas facturas| – para fins de polémica, nem para que nela se exemplifique, in anima vili dos próprios colaboradores, o estilo literário que fez a feitura moral do mundo nos saudosos tempos daquela propaganda cujos pomos de oiro estamos todos, que sigam as artes,[18], colhendo.[19].

Assim, aparando nas páginas da sua revista um artigo da espécie a que me refiro, tão manifestamente contrário à índole, não só de uma revista literária, senão também de um jornal decente, e não podendo haver dúvidas sobre a quanto lhe é contrário, porque é um

 

[69r]

 

flagrante, do estilo e da linguagem[20], que não de ideias subtilmente insinuadas, ou de intenções veladas pela ironia, força é que se conceda que a revista faz suas as afirmações do artigo, pelo facto simples de publicá-lo, e assim entendem opor ao estudo, que publiquei no número anterior[21], numa espécie de retracto oficial, ou desagravo da redacção perante o público.

Só vê você, meu querido José Pacheco, que não é por um excesso absurdo de cortejo que lhe fiz o elogio, justo de ter ganho a coroa de cives servatos, (e) de ter bem merecido da nação.

*

Eu sou, como você sabe, uma criatura tímida, é um outro dos defeitos que costuma inerir aos que padecem de raciocinar. E, se occasião houve em que sentisse ou não a hesitação dos tímidos, é esta, em que não sei se o louve, ou se o culpe, da sua altiva atitude.

 

[70r]

 

Nos nossos tempos de Orpheu, você, é claro, não a tomaria. Isso, porém, não importa para o caso, e adianta menos que pouco. As camaradagens extintas têm, provavelmente, a consistência e o valor das razões dos amigos dignos e firmes, que costumam aparecer[22] metaforicamente e nestas circunstâncias solenes.

Pensando bem, eu creio que você não fez mal. Creio, mesmo, que a visão clínica do caso veria no seu gesto crítico um regresso à saúde, porque uma tendência nítida para a adaptação ao meio. Como, porém, tenho enraizada na memória uma visão de você como camarada de Orpheu e de outras proscrições semelhantes, custa-me um pouco a conciliar a ideia de você com a do meio académico e oficial, a que você se está adaptando. Acostumar-me-ei, naturalmente, como os olhos se acostumam à escuridão. Não veja você meu amigo mais que a justeza: a negrura é acidental.

Perco-me no sonho conjectural do futuro para que você já caminha. E se como antigo camarada o exalto, como amigo de sempre louvo-o. Vejo-o já considerando o nosso pobre Orpheu como um erro da mocidade e um pecado que se expiou. Preferia que você tivesse escolhido, para começo da expiação, outro assunto que não

 

[71r]

 

o meu artigo sobre António Botto; mas por tão pouco não nos zangaremos. Perco a noção do seu presente e até do meu, na visão do futuro do que se aproxima.

A sua reconciliação com a sociedade será completa quando chegar a hora em que a Contemporânea seja dedicada exclusivamente ao louvor do sr. Júlio Dantas e do sr. Augusto de Castro e do sr. Afonso Lopes Vieira.

Quando chegar essa hora redentora (é aqui que tomo posições), peço-lhe que se não esqueça de mim para panegirista. Ninguém melhor que eu pode servir, porque poucos terão tão pouco[23] conhecimento da obra daqueles senhores.

E se a sua adaptação ao meio vai atingir o grau apoteótico da canonização, crítica dos srs. Adães Bermudes, Simões Almeida Sobrinho {…} os doutos senhores que vão os visuais atacar, então insisto absolutamente pelo cargo de elogiador. Quero também ser português; não renuncio ao meu direito de qualquer dia ser crítico como um português o é. E você sabe que para o caso estou nas condições bastantes. Nada vi desses senhores e, como você sabe, sou inteiramente incompetente para perceber exposições, de pintura, escultura ou arquitectura. Por isso quando o dia chegar, não se esqueça você de mim!

 

[72r]

 

*

Tencionava dar-lhe para a Contemporânea, em seguida ao artigo sobre António Botto, um ou outro artigo da mesma espécie, sendo o primeiro um elogio – todo viciado, é certo, pelo facto de ser raciocinado e não dogmático – sobre o mestre Camilo Pessanha. Abstenho-me. Está você livre, meu querido José Pacheco, do risco que correu. Mal disse que ia escrever esse artigo elogioso sobre[24] Camilo Pessanha, me vieram pedir que o não fizesse. A esses meus detractores objectei que Camilo Pessanha não era da minha idade, e que podia portanto elogiá-lo sem que alguém se ofendesse. Responderam-me que não: que, se não era da minha idade quanto à vida, o era contudo[25] quanto à data da publicação do seu livro, e pela natureza da arte que pratica. Calei-me, porque a replica me convenceu. O raciocinador, quando raciocina mal, rende-se com respeito a quem raciocina bem.

 

[73r]

 

Não há só isto. Entre a colaboração, que pensei[26] imprudentemente eu dar-lhe para a Contemporânea, havia um artigo em que[27], na mera antecipação de escrevê-lo, eu sentia dentro de mim um carinho do espírito. Era um artigo sobre o Mário de Sá-Carneiro – um estudo um pouco longo, mas um estudo (creio) de justiça, se bem que não sem ternura, porque mesmo nós os raciocinadores, que somos convidados onde nos recebem mal e proscritos de onde nos pediram que fossemos, temos estes movimentos de amizade e de recordação que os outros mortais julgam ser-lhes peculiares.

A bom tempo veio, meu querido José Pacheco, a sua atitude para comigo e para com os desgraçados a quem faço a injuria pública de elogiar. Publicando o meu artigo sobre o Mário e publicando, digo, na sua revista no seu número seguinte, e ao banzar à opinião vulgar, viria o inevitável Álvaro Maia da ocasião, e esse veria, através de elogios à minha inteligência e à minha cultura, a conspurcação sistemática do grande artista que eu teria elogiado. Isso não, isso nunca, meu querido José Pacheco. Que a-

 

[74r]

 

conteça aos vivos, não está bem, porém é aos vivos que acontece. Dos mortos, posso ainda com o nosso grande Cesário:

 

Nós absortos

______________

______________

__________nunca!

 

 

É uma hipótese, diz-me você, uma coisa que não aconteceria.

*

 

E porque não aconteceria? No artigo de Álvaro Maia insulta-se pessoalmente, sem rosto nem razão, António Botto, que é um colaborador, a pedido de você, da sua revista, isto é, um convidado seu a sua casa. Se neste caso você tem esquecimentos, quantos não poderá você ter para com os mortos, que, como todos sabem, costumam esquecer depressa? De mais a mais, já você publicou, na própria Contemporânea, versos do Mário de Sá-Carneiro. Ora, como o ser colaborador da sua revista é um dos critérios para se ser insultado nela, parece-me que tenha boa razão para não ter receios.

 

[75r]

 

*

Não me queixo de Álvaro Maia, nem do que ele diz. Queixo-me, sim, e amargamente, do símbolo que ele é. Queixo-me de ele não ser ele, de ele ser símbolo. Queixo-me de ele não existir.

É a voz de tudo quanto, não podendo, nega; não fazendo, desdenha; não caminhando, obstrui. Preferia que fosse outro, que não Álvaro Maia, cuja amizade muito prezo, o símbolo vivo desta atitude. Foi ele, porém, que se escolheu a si-próprio. Aceito-o por o que ele me diz que é. Faço-lhe, por isso, a justiça de o não crer ele-mesmo.[28]

Propriamente o símbolo não está só nele, mas nele publicado; e nele publicado na Contemporânea. Fez você o cenário do símbolo, que ele figura. Já sabemos qual é o símbolo; resta saber o que vale a figuração.

*

 

[76r]

 

O meu artigo António Botto e o Ideal Estético em Portugal compõe-se de dois elementos: a demonstração do que seja o ideal, dos ideais que há, e do que seja aquele a que a designação estético distintamente compete; a demonstração de que o livro Canções, de António Botto, se conforma com os atributos[29] deste ideal.

Qualquer contraversão da minha tese força é pois que tenha uma de 3 formas: ou a demonstração[30] de que é falsa a minha análise[31], o que se fará pela refutação da estrutura lógica em que apoiei essa determinação; ou a prova de que é falsa a minha aplicação dessa tese ao livro de António Botto; ou ambas as coisas, juntas.

Poder-me-á dizer qualquer leitor do artigo de Álvaro

 

[77r]

 

Maia a qual destas espécies de refutação – fictícia embora – esse artigo pertence?

Álvaro Maia não refuta a minha tese fundamental sobre os ideais, e, derivadamente, sobre o estético. Começa a argumentação com que não me responde por esta frase inachável:________________. Isto que ele “põe de parte” é todo o meu artigo, ou antes toda a base dele; o que o meu contraditor toma por fundamento da sua resposta é um mero episódio, aliás dispensável, da minha demonstração.

Se Álvaro Maia não combate, pois que nem discute, a minha tese fundamental, claro é que não pode discutir a sua aplicação ao caso das Canções. Não aceita, nem deixa de aceitar, a minha tese; trata-a como se não existisse, e assim não pode examinar – e de facto não

 

[78r]

 

examina – se essa tese se aplica ou não ao livro de António Botto.

E, se não faz a refutação, nem a tenta, seja[32] por uma prova, seja por outra, resulta que também a não fez nem tentou, por ambos juntos, porque dois zeros somam nada.

Que faz então Álvaro Maia nas suas páginas em que não se cala? Faz isto, que é simples e em verdade revelador daquela disposição nacional de que ele se oferece para símbolo: ataca o meu artigo sem lhe responder; e insulta o assunto do meu artigo[33], a propósito de atacar o artigo.

Embora não responda, porém, alguma coisa há de dizer. Percorrendo cuidadosamente os meandros da sua prosa farta e confusa, consegue-se destrinçar cinco afirmações: (1) o livro Canções não presta como obra de arte; (2) o livro Canções é

 

[79r]

 

imoral; (3) afirmação que o amor unissexual era a essência do ideal estético; (4) escrevi um artigo que é moralmente uma porcaria, (5) sou um romântico, {…}  

[Se respondo já depois de ter respondido, a Alvaro Maia é a condenação que me merece a sua insistência neste quíntuplo ataque. Essa insistência é um erro. Seria difícil escrever tão extenso o artigo para fazer afirmações que nem por acaso laboraram na verdade.]

 

O livro Canções, diz Álvaro Maia, não vale nada como obra de arte. Porquê? Álvaro Maia não o diz. Diz que não vale nada. Para tanto é pouco. Esta socialização da infalibilidade papal, tão peculiar nos católicos, não tem ainda direito de cidade nas coisas do raciocínio. Responde-se afirmando o contrário.

 

[80r]

 

Há uma coisa, ainda, a acrescentar. Além do símbolo moral que é, Álvaro Maia é um símbolo universal. |*Ora é certo quando se procura uma verdade ou se defende uma logica, segue-se pelo facto, inevitavelmente sempre no mesmo tom.|

Era escusada a invocação luminosa do deus dos papistas para Álvaro Maia se denotar sectário da Igreja Romana. O tom insultuoso do artigo, o substituto da afirmação dogmática à demonstração, a exagerada intrusão da moral e da autoridade em matérias onde não são chamadas[34] são os sinais quase necessários do temperamento católico. Como não o seria? Uma religião que no seu apogeu produz inquisidores, bem pode produzir insultadores no seu perigeu. E se tanto não bastasse, haveria a considerar que nenhuma outra mentalidade tão naturalmente se projecta na intolerância, o[35] ódio à arte e à beleza, a[36] ausência de espírito cristão, a[37] pressa em julgar e em condenar, no impulso em fazer tudo quanto exproba a voz dos evangelistas e amaldiçoa o exemplo de Cristo.

O catolicismo tem vários aspectos, porém nenhum tão odioso como o seu aspecto moralizador…

É o protestantismo católico – o assim crismado de todos, porque nem sequer tem uma tradição antiga |*ou absoluta com a mesma voz, a eterna voz católica|.    

 

[80v]

 

A defesa apologética tradicional da religião cristã era – em poucas palavras – porque[38] era a verdade e por isso a salvação, não porque fosse a moral ou uma mais moral que as outras. Assim é que {…}

 

{…} e o padre Aquino {…}

 

E a asserção, sobrevive, irónica já e usada contrariamente, no passo célebre do Boccaccio, do judeu que se converte ao Cristianismo porque decerto era verdadeira uma religião que conseguia persistir apesar de ensinada por tais sacerdotes[39].

 

[1] ou /e\

[2] inconscientes /instintivos\

[3] louvor /apreço\

[4] normalmente /no homem normal\

[5] perdemos o /quanto ao\

[6] sua manifestação /(dela)\.

[7] [64v]

No primeiro caso fui anti-social, no segundo {…}

 

[8] a /da\

[9] |pessoalmente| /|*soezmente|\

[10] tenha /tivesse\

[11] desculpem /mo perdoem\

[12] o tom do /a inserção, a presença do\

[13] qualquer /uma\

[14] assegurado /patentemente\

[15] judeu /racionalista\

[16] os leitores /as leitoras\

[17] porém /quanto\

[18] estamos todos, que sigam as artes, /um pouco mais explosivos que se fossem de oiro,\

[19] colhendo. /estamos desmantelando.\

[20] linguagem /expressão\

[21] anterior/cedente\

[22] costumam aparecer /bem podem\

[23] pouco /escasso\

[24] sobre /(o)\

[25] contudo /todavia\

[26] pensei /pensando\

[27] em que /pelo qual\

[28] ele-mesmo. /[idêntico a si-mesmo]\

[29] atributos /característicos\

[30] demonstração /prova\

[31] análise /determinação\

[32] quer /seja\

[33] assunto do meu artigo /artigo de que fala\

[34] a ser chamados /têm cabimento\

[35] o /no\

[36] a /uma\

[37] a /uma\

[38] porque /que esta\

[39] por tais sacerdotes /por uma cúria tão corrupta e tão ignóbeis sacerdotes.\

Agradecemos ao artigo de Jerónimo Pizarro, intitulado "Fernando Pessoa e José Pacheco: entre uma polémica e uma carta sem resposta" (in Revista do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 42, n. 67, 2022, pp. 11-79), que nos permitiu rever a transcrição de alguns trechos deste documento.

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/4242
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Jerónimo Pizarro, "Fernando Pessoa e José Pacheco: entre uma polémica e uma carta sem resposta", in Revista do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 42, n. 67, 2022, pp. 11-79.