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Fernando Pessoa - Literary Theory

This digital edition of texts by Fernando Pessoa deals with the set of poetic theorizing writings from hisArchive and brings together essays, comments, notes, sketches and fragments about literature from the Portuguese author. The documents transcribed are in Fernando Pessoa’s Archive in the custody of the National Library of Portugal, with quota E3. All facsimiles are accompanied by a critical lesson and a paleographic transcription, which is available for download in the “PDF” field.

 

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP-E3, 19 - 106
BNP-E3, 19 - 106
Fernando Pessoa
Identificação
Anatole France

[19 – 106]

 

Anatole France

 

Não, não era um diletante. Prouvera aos deuses que o fora! Anatole France era apenas um diletante amador. Tinha do diletante (excepto no que diz respeito à doença cancerosa, o comunismo, de que sofria) o cepticismo, que nasce de se saber que todas as doutrinas são igualmente defensáveis, valendo cada uma, não o que vale, senão o que vale o defensor; a curiosidade, que sabe que em tudo há tudo; e aquela flor suprema da cultura a que se chama o humanismo, assim definido, uma vez para sempre, por Pater ------------------------

O diletantismo verdadeiro vai, porém, adiante da simples curiosidade pela superfície de tudo: desce à essência das coisas, e é passageiramente intenso e sincero com cada uma delas. O grande diletante vive profundamente, com o pensamento e com a emoção, todos os aspectos que pode da realidade ilusória. Dilletanti foram Goethe e Shakespeare, nem há diletante maior que este, que viveu os tipos mais diferentes de humanidade com igual esplendor de imaginação e de inteligência.

Anatole France, porém, não tinha grandes qualidades nem de pensamento, nem de sentimento, nem de imaginação. Para ser superficial faltava-lhe fundo; para ser passageiro, faltava-lhe demorar-se; para pensar tudo, faltava-lhe pensar, para sentir tudo, sentir, para imaginar tudo, imaginar.

Foi uma espécie de fêmea do diletantismo. Tinha um estilo admirável, posto que sem originalidade: é o estilo médio do estilo superior francês. Desde Pascal está assim. Tinha um admirável senso estético, o que frequentemente acontece às mulheres – nas coisas em que não é muito importante ter um senso estético.

Não: o grande nome de diletante não pode ser dado a Anatole sem um adjectivo restritivo. Para este baixo mundo moderno, inapto para a especulação metafísica – sendo por isso que faz metafísica só em sociologia –, pobre e estreito de sentimentos – sendo por isso que repugna o romantismo – e parabúlico nas suas decisões, Anatole France é a figura exactamente representativa, e de aí a sua popularidade. É o melhor que há na ausência do bom[1]. Encheu as medidas da modernidade culta. Essas medidas são centilitros.

Alguma coisa porém contribuiu para a criação do estado estético da inteligência, que é o máximo a que ela pode atingir – para nos curar do vício da convicção, da mania da sinceridade, da estupidez de tomar a sério um mundo que os deuses, que o dirigem, não tomam a sério nunca.

 

 

[1] do bom /(de bom)\

https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2805
Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 345-346.