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Fernando Pessoa - Literary Theory

This digital edition of texts by Fernando Pessoa deals with the set of poetic theorizing writings from hisArchive and brings together essays, comments, notes, sketches and fragments about literature from the Portuguese author. The documents transcribed are in Fernando Pessoa’s Archive in the custody of the National Library of Portugal, with quota E3. All facsimiles are accompanied by a critical lesson and a paleographic transcription, which is available for download in the “PDF” field.

 

 

Medium
Fernando Pessoa
BNP-E3, 72 – 26–30
BNP-E3, 72 – 26–30
Fernando Pessoa
Identificação
"A Romaria"

[BNP/E3, 72 – 26–30]

 

"A Romaria"

 

Pediu-me António Lopes Ribeiro que escrevesse, para este número literário do Diário de Lisboa, um breve artigo sobre prémios literários. Em princípio, poderia escrevê-lo – um artigo de generalidade. Como, porém, sucede que me foi concedido[1] um dos prémios literários do S. P. N., tudo quanto escrevesse, por teórico e abstracto que fosse, forçosamente seria mal interpretado – ou num sentido, ou noutro, ou porventura em nenhum.

Prefiro, pois, abster-me sem todavia me abster, e assim substituir ao artigo, cujo tema me foi proposto, uma referência sucinta a um dos prémios do Secretariado que, dado, a meu ver justissimamente teve a vantagem de revelar um admirável artista. Refiro-me, como é de supor, ao Padre Vasco Reis e ao seu poema adorável A Romaria.

Em seu paganismo cristianíssimo, em seu sobrenaturalismo humano, esse

 

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poema é organicamente português.

O poema é cristão no sentido particular do católico e por isso mesmo é pagão. O catolicismo – cujos méritos ou defeitos, sociais ou outros me não proponho[2] examinar – tem a singularidade natural provinda porventura[3] do que nele sobrevive do[4] Império Romano, de ser, ao mesmo tempo que universal, particularizado em cada região onde existe. A Igreja de Roma é como um regímen de municípios morais centralizados num império imponderável. Vasto sistema sincrético, tanto a podemos considerar uma sobrevivência do paganismo – como uma transmutação dele. E em cada país onde essa religião existe, esse paganismo sobrevive, ou se transmuta, de uma maneira peculiar. Nisto se assemelha a Igreja à Ordem Maçónica, ressalvando que nesta não há elementos pagãos.

Entre os portugueses, em quem, em meu entender, a emoção supera a paixão – e é isto,

 

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creio, o que radicalmente nos distingue dos vários espanhóis –, o catolicismo assume organicamente o que poderemos chamar o aspecto franciscano, que é, por assim dizer, o aspecto essencialmente emotivo do cristianismo católico. Do paganismo latente no catolicismo, não se manifesta em nós o aspecto estético, como diversamente nos italianos e nos espanhóis, nem o aspecto imperial, como diversamente nestes e nos franceses, mas o aspecto dispersivo e fluido, próprio de tudo quanto a emoção conduz. O nosso catolicismo é sem contornos – uma meiguice religiosa, preguiçosamente incerto do em que realmente crê. Por isso o nosso verdadeiro Deus manifesto é, não o Deus uno e trino, ou qualquer das Pessoas da Trindade, mas um Cupido Católico chamado o Menino Jesus. Por isso não curamos

 

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de Maria Virgem, mas só da Maria Mãe. Por isso os nossos santos autênticos são S. João Baptista menino – isto é, muito antes de ser Baptista – ou um Santo António concebido irremediavelmente como um rapaz muito simpático[5], e cuja função distintiva – a de concertar bilhas – é um milagre-brinquedo. Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não o permitiria.

O Padre Vasco Reis – a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos – pertence portuguesmente a este catolicismo amoroso. O seu livro, fortemente concebido e suavemente realizado, vive numa atmosfera de ternura e de luz, como uma Hélade de bruma molhada de sol. Não conheço livro, em prosa ou em verso, que inter-

 

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prete tão pagãmente, tão cristãmente, a alma religiosa de Portugal. E por trás disso tudo paira fundo contra que o visível se destaca, qualquer coisa de imprecisamente emblemático, de coordenadamente incerto com que se comove, não propriamente a emoção, mas a inteligência. Isso, porém, já não é Portugal: é talento.

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[1] concedido /conferido\

[2] proponho /não tenho que\

[3] porventura /talvez\

[4] sobrevive /vive\ /há\ /resta\ do /de\

[5] um rapaz muito simpático /uma criança, já rapaz grande\

Versão manuscrita do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título:  «A Romaria», in Diário de Lisboa, Suplemento Literário, 4 de Janeiro de 1935, p. 5.

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Classificação
Literatura
Contemporâneos
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
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Palavras chave
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