Por razões várias, entre as quais os ventos republicanos, anarquistas e socialistas e o sucesso recente de um produto que, inventado em Setecentos, se interpunha entre o jornal (ou o folheto) e o livro, o início do sec.XX favoreceu o aparecimento de numerosas revistas mais ou menos culturais e literárias. No período que vai de 1900 a 1915 apareceram, entre outras, A Crónica, Sombra e Luz, Gazeta Ilustrada, Revista Nova, Ilustração Portuguesa, A Revista, Portugália (a de 1903, ignorada pelo Dicionário de Daniel Pires), Arte & Vida, Revista Literária (do Funchal, da Figueira, e de Lisboa), O Heraldo, Ilustração Popular, A Águia, Figueira, A Vida Portuguesa, A Rajada, A Labareda, A Renascença, Orpheu, Atlântida. Editadas quase todas em Lisboa ou no Porto, mensais, quinzenais ou até semanais, de curta ou, raramente, longa duração, muitas delas previam de modo mais ou menos explícito o mercado brasileiro, como já antes algumas publicadas em Paris, como Dois Mundos (1877-1881) e A Ilustração: Revista Ilustrada para Portugal e o Brasil (1884-1892), ou em Lisboa, como o quinzenário generalista Brasil-Portugal, que começara a publicar-se em 1899. A Águia tinha correspondentes e várias lojas de venda no Brasil. O Orpheu trazia por baixo do subtítulo “revista trimestral de literatura” a indicação “Portugal e Brasil”, e apresentava-se sob a dupla direcção de um português, Luís de Montalvor, e de um brasileiro, Ronald de Carvalho, ainda que só dois brasileiros nele tenham colaborado. A Atlântida, que logo na capa se dizia “mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil”, e que teria muitos colaboradores brasileiros, aparecia também sob a dupla direcção do poeta e crítico português João de Barros (1881-1960) e do jornalista e cronista brasileiro João do Rio (pseudónimo de Paulo Barreto,1881-1921). O projecto de uma revista “que defendesse e representasse as aspirações e os interesses comuns do Brasil e de Portugal”(nº 1, p.93), ou que, contra o “desconhecimento literário” mútuo, pudesse “erguer até ao conhecimento perfeito e amorável das suas tendências e dos seus esforços as duas nacionalidades”(id., p.9), nascera meia dúzia de anos antes num prolongado diálogo entre o editor portuense Lello, então muito empenhado na publicação de brasileiros, João do Rio, que visitara Portugal em 1909, João de Barros, que se tornara grande amigo deste, e o escritor luso-brasileiro Manuel de Sousa Pinto.”Por várias vezes os directores [...] tiveram de desistir da sua ideia –lembraram os próprios. Mas, apesar da então”péssima situação económica de quase todo o mundo”, com a garantia do apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e do seu equivalente português a revista sairia em Lisboa em 15 de Novembro de 1915 (não 15 de Janeiro de 1915, como se lê no Dicionário da Imprensa Periódica de Daniel Pires). Sairia sem indicação de editor mas com indicação do impressor (Imprensa Libânio da Silva, Lisboa) e teria 48 edições, concluídas certamente em Março de 1920 e não em Janeiro de 1920, como admite Daniel Pires.
Ao longo desses anos, em que conheceu muitas dificuldades e, a partir do n.º31 (Maio de 1918), muitas irregularidades na saída, pouco foi mudando no formato, inferior ao de uma folha A4, no número aproximado de páginas (100), no grafismo sóbrio, valorizado com quadros, desenhos, vinhetas e fotografias de Almada Negreiros (nºs 10, 26 e 28) e José Pacheco (nº 18), assim como de Alberto de Sousa, António Carneiro,António Soares, Carlos Reis, Columbano, Cristiano de Carvalho, José Malhoa, Raul Lino, Roque Gameiro, Soares dos Reis, Sousa Pinto, Navarro da Costa, etc. Note-se a variação excepcional no papel no nº. 7; o aparecimento de um pequeno desenho na capa e na contracapa a partir do n.º 8 até ao 28; as mudanças de modelo de capa e contracapa nos n.ºs 29-30 e 31, ou do nº 32 ao nº 37 – as mais artísticas – , ou do nº 38 em diante – com a indicação de alguns títulos e autores na capa, em papel mais frágil e avermelhado. Note-se também a capa especial e a extensão excepcional (240 pp.) do nº 25 de 15 de Novembro de 1917, assinalando o fim da guerra. E notem-se algumas das alterações que conheceu a direcção da revista: se até ao nº 31 figurava como secretário Elísio de Campos e editor Pedro Bordalo Pinheiro, este foi então promovido a “director técnico”, entrando para editor José Baptista Águas e para secretário Bourbon e Meneses; no nº 37, de (só) 1919, o subtítulo “Mensário artístico...” apareceu substituído por “Órgão do pensamento latino no Brasil e em Portugal” e apareceram dois novos directores, o brasileiro Graça Aranha, dito “director para França”, já que vivia ao tempo em Paris, e o director gerente Nuno Simões; no último n.º o nome de João de Barros, que fora sempre a alma da revista, já não figurava, por razões que, dissera, se prendiam com a sua “vida funcional e até literária”.
O n.º 38 informava que “com a recente viagem” de João de Barros “a França, à Itália e a Espanha”, a Atlântida conseguira “alargar mais o seu círculo de acção”, o que não parece ter ido muito além de um desejo; a pretensão da latinidade não envolveria, em cada n.º, mais do que 3 ou 4 países; mas com tanto texto em francês (um deles de Edmond Jaloux sobre Walt Whitman) dir-se-ia que a revista passou a ser franco-luso-brasileira, embora tenha publicado um ou outro texto em italiano, castelhano e galego. Sem deixar de ser eclética, com colaborações originais de poesia e prosa, com ensaios incidindo sobre diversos temas, da política ao comércio e às artes, e com críticas, notas e comentários sobre variados acontecimentos artísticos, e sem deixar de insistir no luso-brasilismo, às vezes com o idealismo, a ligeireza ou a retórica da tradição, ou com algum preconceito de colonizador, a Atlântida empenhava-se mais ainda na defesa do humanismo, da democracia e da cultura latina ou europeia.
Mas as colaborações nem sempre eram estimulantes, ou eram desiguais, como os colaboradores. No “editorial” do n.º 1, João de Barros garantia que não seria negada “a colaboração de gente moça”; ora a verdade é que essa colaboração seria rara, e de modo algum competiria com a colaboração de conservadores e académicos como o inevitável Júlio Dantas, ou Manuel de Sousa Pinto; deve no entanto assinalar-se a qualidade de muitas colaborações, ou de colaboradores como António Patrício (Poemas, Mare Nostrum) Aquilino Ribeiro (entre outros, “Carteira dum Libertino”, e várias críticas de arte), Camilo Pessanha (Vozes de Outono, tradução introduzida por Ana de Castro Osório, que a dá como “directamente feita do chinês por um dos grandes espíritos da nossa terra”), Carlos Malheiro Dias, Eugénio de Castro, Jaime Cortesão, Leite de Vasconcelos, Leonardo Coimbra, Luís de Freitas Branco, Manuel Teixeira Gomes, Mário Beirão (Lusitânia), Raul Proença, Teixeira de Pascoaes (Londres).
Os colaboradores brasileiros foram, evidentemente, em muito menor número do que os portugueses, e também não eram como regra muito jovens e ousados. Entre eles, contavam-se Olavo Bilac, homenageado, de passagem por Lisboa, num banquete promovido pela revista, Carlos Maul, João do Rio, João Luso, Afrânio Peixoto, Hermes Fontes, Tristão de Athayde, o único que numa crónica chamava a atenção para as movimentações dos “nativistas brasileiros”, e António Torres que, curiosamente, poucos anos depois se afirmaria como um dos mais ferozes “nativistas”. Mas o mesmo se deverá dizer do “director” – em 1920 – Graça Aranha, que, equivocadamente dado como mentor dos modernistas brasileiros, pronunciou – em 1924 - a célebre frase:”Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a separação”.
Não era esse de modo nenhum o ponto de vista de outro colaborador brasileiro, Ronald de Carvalho, que participou no movimento modernista do seu país depois de ter sido director do Orpheu português. A Atlântida nem uma só vez cita este nome,ou o nome de Sá-Carneiro, cuja morte ignorou, ou o de Pessoa - que já em carta de 1913 a Álvaro Pinto parecia muito distanciado da “coterie” de João de Barros, Sousa Pinto e Joaquim Manso. É verdade que reconheceu Almada, mas só como artista plástico, e que aceitou a colaboração de Alfredo Guisado, mas sem marcas modernistas, de Luís de Montalvor, mas só com um texto crítico (sobre Ronald de Carvalho), e de António Ferro, também só com um texto (e com o nome convertido em “Ferros”). A ausência dos modernistas já afirmados em Portugal e dos modernistas que começavam a afirmar-se no Brasil foi obviamente determinada por um preconceito estético que o próprio Aquilino Ribeiro também parecia evidenciar quando iniciava a sua primeira crítica de arte, publicada no n.º 15, de 15 de Janeiro de 1917, com estas palavras: «Depois da parada futurista de Amadeu Cardoso [sic], que, duma escola velha de quatro anos, teve entre nós o sucesso duma novidade escandalosa, assim no género das saias travadinhas» - e passava a elogiar Diogo de Macedo.
É certo que, como se lia no n.º 25, em que se defendia de críticas de que tinha sido alvo, a Atlântida não tinha que ser “uma publicação guiada só por determinados princípios de arte”; mas, mau grado o que fez pela causa luso-brasileira ou pela causa da cultura, que não foi pouco, falhou rotundamente ao ignorar ou desprezar a melhor modernidade luso-brasileira do seu tempo, traindo também a própria promessa que fizera de “acolher nas suas páginas todas as manifestações elevadas do génio brasileiro e do génio português”.
ARNALDO SARAIVA
Bibl.: CONCEIÇÃO, Cecília da, A Revista Atlântida – Documento Sociocultural e Literário de uma Época, dissertação de mestrado apresentada em 1997 à Universidade Nova de Lisboa; LOPES, João de Oliveira, «Subsídio para a história das relações culturais luso-brasileiras», in Actas do X Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa e do I Encontro Luso-Brasileiro de Professores Universitários de Literatura de Expressão Portuguesa, Lisboa/Coimbra/Porto, Instituto de Cultura Brasileira, Univ. de Lisboa, 1986; SARAIVA, Arnaldo, Modernismo Brasileiro e Modernismo Português, Campinas (Brasil), Editora Unicamp, 2004.