Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco‑os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter‑me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
Escrito em dezembro de 1911 e publicado pela primeira vez em Vida e Obra de Fernando Pessoa (vol. II, 1950), “Análise” é anterior ainda à pretensa tentativa de Pessoa tornar plástico seu estilo, conforme formulou com o “Paulismo”. Esse não deve ser, contudo, um critério de valor para o poema. Escrito com precisão e contenção absolutas, “Análise” figura ao mesmo tempo entre os primeiros e mais impactantes poemas do autor. Não há vestígio de tom elegíaco no texto. Totalmente abstrato, sem imagens, puramente reflexivo e analítico, sua avalanche sonora (marcada pelo uso contínuo das sibilantes, das rimas internas e do eco) e sua rica articulação sintática acentuam a complexidade do raciocínio exposto. O ritmo, por sua vez, é acelerado pelo uso reiterado do enjambement (ausente apenas nos quatro versos que terminam por pontuação). Formalmente, os quinze versos sem repartição estrófica apenas sugerem uma forma poética indefinida. Na verdade, o padrão métrico e rítmico do poema (decassílabos heróicos, com variação para o sáfico) e a identificação de grupos rímicos (rimas emparelhadas e alternadas) possibilitam dividi-lo em dois quartetos e dois tercetos, excluindo-se o verso final. Este, talvez não por acaso, foge ao esquema métrico estabelecido, por se tratar de um alexandrino. “Análise” configura-se, desse ponto de vista, como um exemplo de subversão do soneto.
Mas de que trata o poema?
No fragmento 29 de “Erostratus – Ensaio sobre a fama póstuma de obras literárias” (1925?), Pessoa escreve:
Qualquer indivíduo que seja, de algum modo, poeta sabe bem como é muito mais fácil escrever um bom poema (se os bons poemas porventura se encontram ao alcance de tal homem) acerca de uma mulher que o interessa muito do que acerca de outra por quem está profundamente apaixonado. O melhor gênero de poema de amor tem geralmente por tema uma mulher abstracta. [PETCL, 250]
“Análise” é geralmente lido como um poema de amor tipicamente pessoano, o que será o mesmo que dizer que se trata de um falso poema de amor. Isso porque, para Pessoa, tomar posse das coisas e das pessoas significa convertê-las em abstrações: “O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas. (...) toda a gente interessante é convertível em sonho.” [In “O Sensacionista”, L do D, p.470]. Assim, a interpretação lírico-amorosa do poema deve levar em conta a distância que o eu lírico pessoano mantém do plano físico – a noção, em suma, de que para gozar o mundo é preciso apreendê-lo, não pelos sentidos, mas como idéia: “Se tocares o teu sonho morrerá, o objecto tocado ocupará a tua sensação” (L do D, p.379). No poema, o eu lírico confessa à pessoa para quem dirige o olhar que os olhos que vêem não retêm sua imagem, uma vez que esta foi convertida em idéia da imagem. Olhar para o outro é já não mais percebê-lo, mas borrar seus contornos concretos e refazê-lo pela imaginação, convertê-lo em sonho. Numa expressão, esse eu lírico sente e imediatamente pensa que sente – olha e já se pega olhando.
Pessoa relê aqui um tema clássico. É conhecida a citação de Petrarca, “L’amante nell’amatto si transforma”, no soneto de Camões em que a análise do sentimento amoroso se dá a partir da passagem do plano da percepção (o eu lírico que observa a mulher amada) para o plano da abstração (o eu lírico que encontra em si a amada). Em “Análise”, não resta dúvida de que, por força da imaginação, o eu lírico se transforma na pessoa observada e toma consciência disso: “E a idéia do teu ser fica tão rente / Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me / Sabendo que tu és, que, só por ter-me / Consciente de ti, nem a mim sinto.” (Obra poética – ed. Aguilar, 1965, p.106)
Se por uma lado é possível falar em “amante” e “amada” no poema, a fixação da clave lírico-amorosa limita seu alcance. Lembre-se da imagem recorrentemente negativa da mulher na poesia de Pessoa: “...o homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa de posse sexual para a sua volúpia.” (L do D, p.427) Para além dessa leitura, parece haver uma semente mais promissora no poema.
Repare-se que, no verso final de “Análise”, “Em que sinto que sonho o que me sinto sendo”, o sujeito poético sente fingir ser o que realmente é. Eis um dos momentos inaugurais do lirismo crítico na poesia de Pessoa – “o que em mim sente, ’stá pensando” e “finge que é dor a dor que deveras sente” –, do sujeito auto-analítico, fadado a tomar consciência de todas as sensações e a buscar compreender as leis que regem a própria personalidade: “É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida” (L do D, p.484). Momento em que o sujeito poético, ao olhar para o outro, sente-se na presença de si, mas de um eu transformado num abismo aberto por dentro. Um abismo de fundo desconhecido entre os extremos do “sentir” e do “pensar” e, mais tragicamente, do “ser” e do “não ser”. De “Análise”, sob o disfarce lírico-amoroso, se obtém, afinal, uma das mais altas sínteses do pensamento desdobrado e da poética da inteligência que singularizam o lirismo reflexivo de Pessoa.
Caio Gagliardi