Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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O poema “À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, segundo os projectos que Fernando Pessoa deixou, abriria os Poemas Portugueses, conjunto constituído por “poemas Maiores” que não fossem de “índole reflectiva ou elegíaca.” (Fausto, pp. 197-8). Nesse conjunto caberiam, entre outros, os poemas “O Manipanso”, “Agamemnon”, “Mar Português”, “Ode ao Encoberto”. Nesse projecto aventa, ainda, a hipótese de Poemas Portugueses ser o “título geral, dos outros livros também” (Ibidem). Parece referir-se aos outros livros de poemas que menciona nesse mesmo testemunho e que são Cancioneiro e Itinerário, este último constituído pelos tais poemas maiores de índole reflectiva e elegíaca.

No entanto, apesar de projectar a edição do tal livro onde incluiria o poema “À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, Pessoa, tendo, provavelmente, em conta a situação de instabilidade e insegurança que o país vivia, achou, talvez, urgente trazer à memória dos portugueses aquela figura que, para muitos, ainda representava a imagem do salvador. E a 27 de Fevereiro de 1920, publica no nº4 do jornal Acção a ode onde exalta o presidente assassinado.

Por o governo deste “soldado-rei” ter sido curto (um ano: de 5 de Dezembro de 1917 – data da revolução sidonista – a 14 de Dezembro de 1918 – data do seu assassínio), na opinião do poeta, a esperança que a nação depositara nesse “lampejo transitório” que surgira na desorientação que Portugal vivia, ainda não esmorecera. Era preciso mantê-la viva para que a nação tomasse em mãos o seu destino, e, por isso, decidiu reacendê-la com a força da sua palavra. Com o poder do seu verbo evoca esse chefe prematuramente desaparecido (tal como El-rei D. Sebastião) e trabalha de tal forma essa figura que dela faz emergir o Desejado.

Com este poema, Pessoa teve, quiçá, a ilusão de criar um novo mito, o mito sidonista e, possivelmente por esta razão, dele se fez arauto. Pretendeu, tal como com o seu “novo sebastianismo”, que ele fosse o sinal para um Portugal futuro ressuscitado da sua decadência, desalento e miséria. E tanto e tão completamente lhe quis dar a imortalidade do Desejado que, para aqueles que não teriam a capacidade de entender este seu poema de complexa elaboração intelectual, Pessoa, em mais uma das suas muitas despersonalizações dramáticas, empunha “a bengala e a guitarra de um cego profeta, na boa tradição bandarrista” (Pessoa Inédito, p. 55) e nas quadras escritas à maneira do improviso popular, Sidónio aparece como o Desejado que um dia há-de tornar: “Um dia o Sidónio torna/Estar morto é estar a fingir./Quem é bom pode perder a forma/Mas não perde o existir.” (Ibidem, p. 354)

 A oposição de Sidónio Pais à participação portuguesa na Primeira Grande Guerra, bem como a expectativa que a insurreição vitoriosa por ele liderada criou foram razão suficiente para a adesão de Pessoa ao chefe militar e ao homem capaz de congregar à sua volta os ideais adormecidos de uma nação prostrada.

Julgou-o pronto a regenerar o país, expurgando-o do mal que o minava e que em muito contribuía para “a nossa ruína cultural, a nossa lusitanidade não íntima.” (Obra, III, p. 579). E, apesar de, num texto não datado, mas posterior à morte deste presidente, reconhecer os seus erros e defeitos, não deixa de enaltecer “as qualidades místicas do chefe de nação” (Ibidem) que declara serem as “de astúcia precisas para manejar os homens” e “as de energia para os compelir” (Ibidem). Mais adiante, nesse mesmo texto, justifica a imoralidade da regência de Sidónio, argumentando que este mal fora, apenas, uma consequência de outros predicados do seu carácter: honestidade, lealdade e nobreza na coragem. Devido à sua honestidade, aquele homem, que considerava ser um ser superior, não conseguira destruir os ladrões que o cercavam; a sua lealdade não o deixara ver que estava envolvido com bandidos e a sua nobreza na coragem impedira-o de se saber rodeado de traidores.

Foram, porventura, estas qualidades enigmáticas, misteriosas e profundas que o autor de Mensagem viu em Sidónio que o levaram a entoar este hino em seu louvor. E, talvez, tendo em conta as forças que se congregaram em torno deste militar, aquando da revolução de Dezembro (classes trabalhadoras que, até então, giravam em torno dos ideais anarquistas e sindicalistas, os partidos de oposição à política seguida pelo Partido Democrático, as vozes que se levantavam contra a participação de Portugal na guerra assim como as dificuldades económicas que a nação atravessava), e os resultados do sufrágio universal que legitimaram o mandato deste presidente, Pessoa tenha pensado em metamorfoseá-lo no salvador da pátria. Herói ainda vivo na memória de muitos, figura próxima e real que, não só, pegara em armas para repor uma nova ordem no caos em que a nação mergulhara, proclamando a República Nova, como, por assim dizer, dera a vida por essa mesma causa, Sidónio surgiu aos olhos de Pessoa como possível sustentáculo de um novo mito, e, por isso, encarou transformar essa figura carismática num símbolo, num arquétipo, num redentor.

Portanto, nesta sua ode, eleva-o à categoria de Rei, porque o título de Presidente já lhe cabia por justiça, tendo em conta o resultado do sufrágio que o elegeu. Porém, o de Rei conquistara-o pela sua acção, pelo seu carácter, pelo papel que desempenhara como chefe da nação e, sobretudo, pelo vazio que a sua morte deixara.

Então, o poeta, com o poder criador do seu verbo, talvez esse “novo verbo ocidental” de que nos fala no poema, sagrou-o Rei depois de morto: “Se o amor crê que a Morte mente/Quando a quem quer leva de novo/Quão mais crê o Rei ainda existente/O amor de um povo! //  “Quem ele foi sabe-o a Sorte,/Sabe-o o Mistério e a sua lei./A Vida fê-lo herói, e a Morte/ O sagrou Rei!” (Obra, vol. I: p. 1172). Encarnou nele D. Sebastião – “Nele uma hora encarnou el-rei/D. Sebastião” (Ibidem: p. 1177) para, assim, o canonizar medianeiro entre o homem e o além, fazendo dele a tal força capaz de corresponder a esse mandato divino de que Portugal era detentor.

Luísa Medeiros

BIBL.: Fernando Pessoa, Fausto – Tragédia Subjectiva, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Presença, 1988; Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito, Lisboa, Horizonte, 1993; Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros, vol. I, II, III, Porto, Lello, 1986.