António Patrício, escritor e diplomata, nasceu no Porto, a 7 de Março de 1878, e faleceu em Macau, a 4 de Junho de 1930, com 52 anos de idade. Filho de Emília Augusta da Silva Patrício e António José Patrício, um armador que possuía uma agência funerária, viveu nesta cidade a infância e juventude, onde frequentou o Liceu Rodrigues de Freitas, matriculando-se de seguida na Academia Politécnica, num curso de Matemática que não chegou a concluir. Foi entre a Foz do Douro e Leça da Palmeira que construiu o seu círculo de amigos, de que faziam parte Manuel Laranjeira e João de Barros.

Depois de uma breve passagem por Lisboa, entre 1899 e 1901, onde, já casado com Alice Minie Josephine d’Espiney frequentou a Escola Naval (respondendo, talvez, a essa forte e confessada atracção pelo mar que classifica como “coisa admirável”), regressa às origens e ingressa na Escola Médica do Porto, com 23 anos de idade, acabando por se formar em medicina em 8 de Janeiro de 1908, com a defesa da tese Assistência aos alienados criminosos. É desse tempo de estudante a sua estreia literária com o livro de poemas Oceano (1905).

Embora nunca tenha exercido profissionalmente, de forma remunerada, medicina, existem referências a uma breve passagem e a serviços prestados no Hospital Psiquiátrico do Conde de Ferreira no Porto e ao seu interesse pelos estudos psiquiátricos que começavam a despontar.

António Patrício optaria, no entanto, influenciado por Guerra Junqueiro, por prestar provas e ingressar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, tendo sido nomeado, em Fevereiro de 1910, para o consulado de Cantão.

A sua afirmação no mundo das letras, com uma visão multicultural e cosmopolita, ficou ligada, de forma indelével, à sua vida diplomática, em contínuo trânsito por diferentes países, desempenhando cargos em várias cidades e continentes, entre Bremen, Atenas, Constantinopla, Londres e Caracas, até ao ano em que faleceu, de passagem para Pequim para onde fora nomeado como ministro plenipotenciário. “António Patrício sofreu o influxo de muitas literaturas, como soe acontecer aos que consomem boa parte do tempo no deleite intelectual de ler e comparar” – afirma o filho do escritor, leitor atento da obra do pai, em artigo publicado no “Jornal Novo” (31.3.78).

Enquanto escritor, sem contemporizar com escolas literárias ou filosóficas, rejeita conjecturas e orientações de ordem estética, cruzando temas e figuras que dizem respeito à História da Pátria com o conhecimento da diversidade do mundo.

No seu imaginário ressalta sobretudo uma atenção particular à natureza humana, olhada numa dimensão introspectiva e filosófica, com ênfase nos dualismos do homem, da carne e do espírito. Este olhar intimista acabará por caracterizar o seu estilo, marcado, no geral, pela tensão trágica na vivência emotiva de cada momento face à omnipresença da morte (que o afectou na vida real, desde a sua infância e juventude, com a perda de três irmãos menores, vitimas de tuberculose). 

Mas é esta tensão permanente na relação com os limites que enfatiza, simultaneamente, a celebração da vida como sentimento de plenitude e faz de António Patrício, também, “o poeta da alegria” (Manuel Tânger Corrêa) ou o “poeta da energia” como reconhecera também o seu amigo João de Barros.

    Apesar da sua independência e do seu ”aristocrático isolamento” (nas palavras de David Mourão - Ferreira) afirmados numa singular imagética de intensidade expressiva, em que a escrita se define como demanda iniciática entre uma grandeza de nível espiritual e o confronto com a fragilidade terrena, é no entanto possível, como já foi dito, aproximá-lo de movimentos estéticos que influenciaram fortemente a geração de Orpheu e as vanguardas modernistas, concretamente o movimento do decadentismo, associado a poetas como Rimbaud ou Mallarmé, e também o movimento do simbolismo, associado em Portugal à publicação da revista Os Insubmissos (1889), e que para além de Raul Brandão tem os seus principais representantes em Eugénio de Castro (Oaristos, 1890) e Camilo Pessanha (Clepsidra, só editado em 1920) .

Na peça teatral “O Fim” (1909), primeira de um género dramaturgico em que António Patrício principalmente se distinguiu e conquistou prestigio, pela abertura do seu universo a um vasto campo mitológico, o escritor cultiva a riqueza de um imaginário apocalíptico em torno da ideia de um reino em agonia e decadência. Esta peça, vinda a público quando no País se antevia já o fim da monarquia, expressa, através das falas das suas personagens (entre as quais se distinguem a Rainha Velha - referência a Maria Pia de Sabóia, mulher do rei D. Luís - e uma figura sem nome, “O Desconhecido”), a experiência dos limites como reacção particularmente extremada de “um povo que hibernava há séculos, marasmado” face ao perigo e ameaça do estrangeiro: “ Os que desembarcavam nesse instante, fugiram para bordo, alucinados, com terror dessa terra de loucura, em que a vertigem dum povo desgraçado contagiara as pedras, insurgindo-se …”.

 O acto heróico, “espécie de sebastianismo tacteante”, marcado pela vertigem sacrificial, afirma a esperança de um adiado e verdadeiro renascer: “Morreu a Capital: há mais país. Triunfar … pela vida ou pela morte, mas triunfar. Fomos iniciados”.

As referências a um presente gasto, associado a um vocabulário e imagens de gosto decadente, e nostalgia de um passado mítico, que se revela como luz a perseguir na escuridão, afastam o poeta do enlevo naturalista do seu círculo de amigos, de que faz parte Fialho de Almeida, a quem dedicara Oceano. Essa atitude de desencanto face ao real e nostalgia messiânica aproximam António Patrício dos poetas da Renascença Portuguesa; com eles partilha um imaginário marcado pela acção e impregnado de sentido vitorioso e grandeza mística, reconhecido pelo estrangeiro como movimento absolutamente nacional e visto por Pessoa como o início de um ressurgimento da alma lusitana.

Nesta primeira peça teatral é já possível reconhecer reflectido “o clima verbal do simbolismo” (Urbano Tavares Rodrigues), manifestado em figuras de contornos pouco definidos, movendo-se num espaço e num tempo sem limites, e que será ampliado no livro de contos Serão Inquieto (1910).  

Com este novo género, as personagens, para além de prolongarem o tomdecadentista, acentuam o trabalho plástico e musical das palavras e parecem ser a voz dessa linguagem literária de profunda sensibilidade e ritmo poético, mediadoras privilegiadas da Beleza e do Mistério. Integram ambientes marcados pela sugestão, como acontece com Harry, no conto “O homem das Fontes”, o peregrino místico cuja sede de elementos primordiais o levam a idealizar o “palácio da Água”, templo de sentidos para habitação na terra: “ Como Harry me fez logo notar, o seu projecto, perfeitamente realizável, era um ensaio d’arquitectura musical (…) Mostrou-me então a partitura do palácio. Sentou-se ao piano e tocou-me alguns motivos… a gama das ressonâncias era imensa, indo dos acordes dos mármores e alabastros até aos timbres dos metais mais ricos, dos bronzes, das pratas foscas, claros oiros, com espessuras várias nuançando, embutidos nos mármores da fachada, enriquecida assim com cores de jóia e os tons sobrenaturais dum órgão d’água. Oh, essa sinfonia! Reouvi-la e, meu Deus! Prazer supremo, ouvi-la e vê-la se um dia o templo da Água fosse vida.”

 Estes seres, ligando o real quotidiano a um desejo de comunhão com a Ordem Universal, protagonizam a demanda do Amor e da Beleza num sentido de absoluto; Projectam a acção num espaço hierogâmico, idealização do encontro entre os Deuses e o homem. Nessa forma de expressão recriam-se, a partir da atmosfera particular de uma época, figuras míticas de todos os tempos, surgindo figuras como Suze, uma mulher das noites do Porto que, num conto com o mesmo nome, dá voz a uma sabedoria de parábola, evocação da prostituta sagrada e incarnação do pecado original, sujeição à decadência material (EVA) e superação, matéria espiritualizada (AVE): “ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa e através de insultos e torpezas conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!”

Essa espiritualidade, que abarca a magia dos sentidos, expressa-se também através de motivos inspirados pela figura crística, com alusão às suas últimas palavras na cruz, testemunhadas por uma velha águia, de lamento e remorso por ter vivido virgem: “Queria largar a cruz pr’a poder dar-se à terra desse cerro, a alguma forma, a um corpo de mulher, a alguém, a alguém” (Diálogo com uma Águia). Ela pode manifestar-se igualmente em motivos panteístas, como acontece na caracterização da personagem principal do conto “Veiga”, uma das personagens patricianas com maior densidade psicológica que, depois de perder as “asas do amor/ilusão” e face ao duplo que o fez actuar como “títere”, se transfigura e surge imerso numa beatifica loucura: “Eu pensava em Ofélia, no Rei Lear, nas loucuras patéticas de Shakespeare, ao ver esse alienado vagabundo, esse estranho pedinte de olhos meigos, que trazia só pétalas nos bolsos, e em plena luz polínica d’estio oficiava a Pan…”

Ressalta, no conjunto da obra, uma atenção particular à interacção, de influência nitzchiana, entre, por um lado, uma simbologia fundada numa natureza em decadência, prolongada na descida ao inconsciente e às raízes do ser, de conotações dionisíacas, e, por outro, uma simbologia de preservação dos limites do ser, que impede a dissolução caótica e apela à afirmação apolinea da identidade, marca da especificidade desta obra, numa conquista de serenidade perante o decurso temporal irremediavelmente trágico, capaz de perceber e usufruir esta vida como “maravilha triste”.   

As personagens patricianas evidenciam, no seu conjunto e particularmente no género dramaturgico em que este escritor consolidou a sua obra, uma ideia de retorno às nascentes do Ser, de sentido iniciático.  

O interesse pelas figuras históricas está associado Depois de Pedro o Cru (1918) e Dinis e Isabel (1919), duas peças que mitificam a Idade Média portuguesa imbuída de um estetismo impregnado do mistério das origens e de Além, António Patrício atinge, com D. João e a Máscara (1924), o ponto alto da sua carreira, onde surge como personagem principal o célebre D. Juan “padecendo de uma febre de beijar mais fundo” e “buscador de fontes por destino”: “o que me interessa nas mulheres, tu sabes, é o que elas ignoram, e possuem… Há quem ausculte o chão e oiça nascentes. A terra para alguns fez-se vidro: vêem-lhe artérias de cristal ao fundo”.

A representação destas várias personagens históricas (prolongadas por vezes na representação do próprio país), associadas a uma atracção pelo misticismo medieval da geração realista e que se prolonga pelo início do Século XX, ganha sobretudo sentido no ênfase dado, de forma simbólica,  à  “doença” inerente à condição material que urge superar: “Sou o semeador maldito. Não me curo. Deitei mau-olhado às sementeiras. Terra onde eu pus as mãos, é terra gasta” (Dinis e Isabel).

Estas imagens, que veiculam, a partir de uma natureza em decadência, a ideia de regeneração, inserem-se numa tradição hermética que valoriza a transmutação da matéria, purificação do Ser numa superação de si próprio (“… ir numa santíssima alquimia/transformar um remorso num perdão” “Viver”, Oceano); a dor, acarinhada como princípio de redenção: “renuncia feliz para criar mais beleza! /crava nos flancos da desgraça asas de orgulho/sê pó, mas sê pó de oiro, irmão do pó de Julho.” (“Para o Mar”, Poesia).

O ser adâmico faz o seu percurso neste mundo no sentido de se aproximar cada vez mais da harmonia universal, do encontro com a unidade cósmica cuja memória transporta em si.   

Ao lado dos dramaturgos simbolistas, António Patrício privilegia, num teatro de referências históricas e sociais, os dramas e conflitos íntimos da alma humana, deixando ao leitor, tal como ao espectador, um maior liberdade de apropriação das personagens, na sua função eminentemente evocativa.

No conjunto da sua obra dramaturgica, incluindo os textos deixados incompletos e inéditos, ressalta este “investimento lírico no texto cénico” (Maria de Lourdes Cidraes), a exemplo do monólogo de Pedro frente ao túmulo de Inês, como um poema de amor deste “rei-saudade”: “Uma noite, ao recolher – pobre de mim! – quis enterrar num cedro a minha espada. A lâmina partiu com um tinir frio. (Pausa) E às vezes nas palmas destas mãos, quase sentia, a polpa dos teus seios!... Era um lobo o teu Pedro: era uma hiena. Mas um dia, “Alguém” desceu ao fojo: - “Alguém” que era da morte e da vida; e mais – de além da morte e além da vida… E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou. Vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês.” (Pedro o Cru).  

Também na peça “Dinis e Isabel”, de confessada “intenção toda lírica”, a que subjaz o conto medieval Tristão e Isolda, a acção, protagonizada pelo rei, é suspensa dando lugar a uma forte expressão subjectiva da natureza humana, em comunhão com o mistério e desconhecido: “ … À roda de Isa morta, tudo escuta. Deus faz talvez exame de consciência. Por isso as coisas mesmo se recolhem. O tempo tem as asas estendidas … Esta é a câmara dela, a nossa câmara. A arregaçada dela não floriu … Não houve as rosas brancas do milagre … Não quero mal à Morte: está connosco. Sinto-a à nossa roda”.

A leitura ganha importância nos textos para teatro deste autor que, para além de vocacionados para as artes do palco, valorizam, seguindo uma estética simbolista, as sugestões e o poder metafórico das descrições, inclusive ao nível dos cenários:Começa agora o saimento. Vem crescendo na névoa e no silêncio: o grisalho dá-lhe um ar de aparição, que ao mesmo tempo se diria perto e longe, como se caminhassem, esquecidos, num grande espelho embaciado, sem memória.” (Pedro o Cru).

Uma atmosfera de acentuado intimismo distingue o conjunto da produção literária de António Patrício, repartida pela poesia, teatro e contos sendo possível distinguir, como eixos fulcrais, os temas transversais do Amor, enquanto busca e apologia de uma vida plena, e da Morte, como sinal de fragilidade e perda mas sobretudo iniciação, abertura a uma nova consciência (“é a vida que dá sentido à morte e a morte que é sentido da vida” pode ler-se no texto em projecto Uma Tragédia Egípcia).

Também a Beleza e a Saudade se constituem como pólos temáticos que activam outras imagens e símbolos na interpelação da dor e da perda: desafio à criatividade humana, vista como dom supremo - asas na ligação entre a terra e o céu. Esses núcleos de significação surgem entrelaçados numa escrita que reflecte sobre o destino de Portugal e vai acompanhando, como uma mística literária, a viragem do século. O autor, que morre no Oriente três anos antes de Fernando Pessoa publicar a “Mensagem”, texto fundamental para o imaginário da identidade da nação, articula, de forma poética, fundamentos de referência histórica com a abertura a um novo conceito cultural de identidade - imbuído de um sentido estético de carácter universal e humanista. 

 

Para além da obra publicada, Poesia Completa (“Oceano”, “Poesia” e “Dispersos”);antologia de contos Serão Inquieto (“Diálogos com uma Águia”, ”O Precoce”, “O homem das Fontes”, “Suze”, “O Veiga” e os aforismos ”words”); Teatro Completo ( “O Fim”, “Pedro o Cru”, “Dinis e Isabel”, “D. João e a Máscara” e “Judas”), contam-se ainda três textos dramáticos inacabados e publicados por Manuel Tânger Correia (“A Paixão de Mestre Afonso Domingues”, “O Rei de Sempre” e “Auto dos Reis ou da Estrela”) e vários inéditos (principalmente divulgados por Maria Manuela Gambôa em tese de mestrado apresentada à Universidade Nova de Lisboa) em que se incluem poesia, prosa aforística, epistolar e outros textos dramáticos em projecto (“Teodora ou o Sonho de uma Noite em Bizâncio”, “Diálogo no Alhambra”, “Uma tragédia Egípcia”).

 

Bibliografia:

Gamboa, Maria Manuela Martins, António Patrício : Ele e os Outros, Dissertação final de Mestrado em Literaturas Comparadas portuguesa e Francesa, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1987.

Lopes, M. Teresa Rita, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et Création, Paris, F. Gulbenkian/ Centro Cultural Português, 1977.  

Maria de Lourdes Soeiro Cidraes, O Espelho Nebuloso. A Mitologia Nacional Portuguesa e o Teatro de António Patrício, Dissertação de Doutoramento em Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999. 

Mourão-Ferreira, David, “António Patrício (1878-1930). António Patrício da época à obra” in Sob o Mesmo Tecto. Estudos sobre Autores de Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1989.

Rodrigues, Urbano Tavares, “António Patrício et le drame symboliste français” in Os Estudos Literários (Entre) Ciência e Hermenêutica, actas do Primeiro Congresso da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, Lisboa, Associação Portuguesa de Literatura Comparada, 1990.