António Carneiro nasceu em 1872 em Amarante, filho de um obscuro comerciante emigrado no Brasil e sete anos mais tarde assistiria à morte da mãe, abandonada pelo pai, o que levaria ao internamento no Asilo do Barão de Nova Sintra de onde partiria, com doze anos de idade, para a frequência da Academia de Belas Artes do Porto, onde quis cursar escultura e terá sido aluno atento do grande Soares dos Reis, também ele de origem modesta e destino trágico. 

A sua partida para Paris em 1897 é um dado relevante, porque aí foi o pintor interessar-se por obras como as de Puvis de Chavannes, Carrière ou Auguste Rodin, e aí terá visto o Friso da Vida de Münch, iniciando, dois anos depois, o seu tríptico A Vida. Entre 1899 e 1900 efectuaria viagens a Itália e à Bélgica antes de regressar ao Porto. De 99 ainda valerá registar a eventual visita a uma exposição que a Galeria Durand Ruel dedicou, consagrativamente aos Nabis e a Odilon Redon e, com o seu regresso ao Porto - com naufrágio de permeio do navio Saint André, em que voltavam muitas das obras executadas em Paris - se haveria de fechar um primeiro ciclo biográfico. Os dez anos seguintes não foram especialmente ricos em de episódios, e como não poderia deixar de ser, passando-se isto no Porto e em Portugal. Ainda assim, assinale-se que, em 1901, terminou o grande tríptico e executou um admirável Ecce Homo, penetrante auto-retrato que a Misericórdia haveria de recusar por estupidez, alegando que o pintor esquecera representar o bordão e a coroa de espinhos que se pediam num Cristo. 

Em 1903 viajou de novo até Paris e a partir de 1906, muitos quadros depois, começou a frequentar a praia de Leça da Palmeira onde ia conviver com literatos como Júlio Brandão, Fausto Guedes Teixeira e outros, sendo de destacar que, de então em diante datam uma série de marinhas que começaram a definir a zona essencial do seu olhar de artista. Daí por diante, até 1910, ano da República implantada e da fundação da revista literária e filosófica A Águia, de que foi director artístico, ganharia medalhas várias e executaria encomendas correspondentes de um talento genuíno e razoavelmente aceite, ainda que incapaz de entender o seu génio. 

Foi Jaime Cortesão quem, n'A Águia, em 1914, lembrou um encontro durante o qual o pintor lhe teria confiado que, para ele, a arte seria «interpretação ardente de todo o movimento» e ainda que «É ele próprio que declara o seu culto da Forma, porque a considera o Verbo supremo da Expressão». 

Estas considerações sobre forma e movimento são surpreendentes vindas da parte de um pintor portuense em inícios do século. Elas teriam agradado — ou mesmo até servido — à verve inflamada e semifuturista de Amadeo de Souza Cardoso, o seu conterrâneo de Amarante então já em Paris provavelmente. E indicam-nos também o quanto ele já se imbuíra das doutrinas estéticas propagadas pela revista que veio a dirigir. Uma revista que se queria fazer voz da «Pátria do espírito» — o que se não deve confundir com o espírito da pátria, que depois animou a ascensão dos movimentos nacionalistas e da ditadura em Portugal — e que procurava reintegrar, num ultra-romantismo tardio, que se fez simbolista nos seus excessos, uma compreensão do irracional da natureza projectado no cerne da natureza humana.

Este será, porventura, o grande tema da pintura de Carneiro, alma gémea de Pascoaes na comum inquietação dos longes, das distâncias, das ausências, dos seres espectrais, sombrios, e das paisagens do espírito, enfim do saudosismo entendido como metafísica exemplar. Mas onde Pascoaes encontrou como motivo e sujeito mais abstracto o denso Marão, o seu Marânus, espírito da serrania movimentado pelos ventos, pelas alturas, pelos colossais abismos em fraga abrupta que por vezes percebemos na agreste paisagem duriense — opondo esse valor telúrico e ancestral à progressiva dominação das máquinas no universo urbano — Carneiro encontrou no mar, nos nevoeiros de Leça, na brancura imensa dos areais sem fim, a vaga personagem que lhe haveria de servir para se fazer o mais estranho artista da sua geração portuguesa. Aquele que, em tempos ainda de naturalismo já em ocaso, o abandonou por outras vias de espiritualização e de irracionalização da paisagem, e desde muito cedo, quando pintou A Vida, esse tríptico que constará sempre entre as poucas verdadeiras obras-primas da pintura portuguesa.

Nesse imenso quadro, grande pela escala e pela importância, Carneiro havia já projectado em 1899, quando esboçara o primeiro estudo, ainda influenciado por Münch, uma teoria do símbolo que marcaria doravante o seu idioma de pintor. Os azuis, os rosas, os esverdeados, os cinzas que empregou, aprendidos em Moreau e em Puvis de Chavannes, referem um parentesco de intenção que não poderia nunca ter tido com outros pintores portugueses.

É verdade que, por vezes, algum Marques de Oliveira pressentiu, nas cores sensíveis da sua paleta feérica, alguma orientação nesse sentido. Como de outras, mas mais incertas, se podem disso encontrar ecos, antes, em Veloso Salgado. Ou até, mais raramente embora, em Malhoa, como no quadro O Remédio. Mas não desta maneira, nem com esta intensidade.

Em A Vida, Carneiro concebe como que uma noção global do seu tema, dividindo-o em três momentos, como se cantos de um poema se tratasse. A dimensão poética da obra é evidente e, nela, o artista projectou essas três idades — infância, idade adulta e entardecer da vida — como etapas de uma passagem cujo sentido, mais que metafórico, é metafísico e inapreensível fora do contexto da arte ou da poesia.

Haveremos de notar que nada liga de facto os três painéis, sendo desde logo as três paisagens tão diversas entre si. Entre o sentido do primaveril paradisíaco, elegiacamente pintado, do primeiro painel, e o registo quase gótico do painel central, em que um cavaleiro cego, cristão de armadura reluzente à Walter Scott, é conduzido por uma donzela sensual e formosíssima, parece não haver continuidade. Saídas de uma densa e nebulosa floresta em dois ginetes brancos, as duas personagens desse painel central vêm de encontro a um exterior do quadro que as não poderá conter. São emissários de um mundo de estranheza que se acercam como se viessem de um outro lado do espelho. Mas nada também estabelece um raccord compreensível entre qualquer um destes dois painéis e o terceiro deles, obscuro como um inverno triste, em que uma majestática e improvável esfinge egípcia se vê, junto ao mar imóvel como um lago, como se trazida pela correnteza das águas, para ir servir de assento a uma mulher na meia-idade a cujo colo se acolhe uma criança nua. No entanto, eles rimam profundamente entre si. Seja pelo sentido do desenho, que Laura Castro chamou uma «depuração linear» — que Carneiro então sustentava ainda como estrutura básica da sua arte —, como pela presença activa de alguns símbolos que suportam razões invisíveis de uma continuidade poética de outra maneira incomunicável. 

Assim o tema da cegueira — nos olhares perdidos e desencontrados do primeiro painel, o da Esperança, nos olhos do cavaleiro, do segundo, o do Amor, na opacidade da esfinge verde no painel da Saudade — que alude a uma cegueira da pintura, indutora de metamorfoses do olhar. Assim a presença subtil da flor — seja nenúfar, rosa no centro do painel central, junto ao peito da donzela, e motivo assim de um centro de cor forte e inesperada em todo o quadro, ou aquela que a criança contempla na terceira etapa. Assim, enfim, o céu, que misteriosamente se tinge de rosa na única continuidade precisa entre os três momentos. Nada os ligando senão os símbolos, parece-nos impossível pensá-los fragmentados, tal a unidade simbólica que os une, fazendo deles, de facto, um único quadro. Nada os ligando, também, senão a sensação de um não-sentido que em todos eles se pressente, mas que em conjunto se parece intensificar até a um hausto de absurdidade e de interrogação cósmica.

Obra de foro existencialista, filosófica que não pictoricamente avançada sobre o seu próprio tempo, o tríptico de Carneiro, incerto ainda na sua pintura aguada, fluida, ténue na extensão dos pigmentos a uma fina camada de tinta rasa à tela, só pode sempre surpreender pela estranheza. 

E essa estranheza, que se traduz aqui na espectralidade das figuras em still de drama extático, à maneira de um Pessoa, será doravante a marca essencial de Carneiro, mesmo se por outras vias. Só à sua luz fugaz, de resto, poderemos compreender a sua inscrição no movimento de A Águia, a sua afinidade sensível, electiva, com as abstracções mítico-filosóficas do seu amigo Teixeira de Pascoaes. 

A pintura de Carneiro, por estes anos, remete para estados da percepção e da consciência, ou para estados da alma, como então se dizia, que subentendem um conhecimento por dentro de uma luz irracional, vizinha da loucura e do delírio opiáceo, irmã dos devaneios de um Edgar Poe ou de uma Emily Dickinson, parente de um visionarismo que, mais de um século antes, se vira nas telas de um Caspar David Friederich em eco dos poemas de Hölderlin.

Ora no Porto, e em Portugal inteiro, não havia nem haveria tão cedo cultura que bastasse para integrar este delírio e outros, matéria de um «tornar visível» que António Carneiro antes de Klee adivinhou como objecto ou intenção mais funda da pintura. Em 1923, comentando a obra, Leonardo Coimbra escreveria n’a A Águia: «Vejo-me a mim mesmo, debruçado sobre o poço da minha alma, a rever as constelações do meu Destino». 

Será esse sentido da ausência — que Pascoaes levou ao plano de um enunciado filosófico obscuro e, a seu modo, fascinante, pelo enredo que gera confundindo sonho e realidade — o tema que aflora na pintura de Carneiro, como assunto central. Seja pela espectralização das figuras — que Pascoaes nos seus textos radicalizou em extremos de fantasmagorização —, seja ainda pelo modo como, a partir daí, perseguiu um horizonte de lonjura e de distância melancólica que se faziam pressentir já no painel da Saudade do tríptico de A Vida.

Nessa obra, quer a esfinge estática, quer o mar — a primeira pela sua referência cultural e geográfica, alusiva a um contexto espáacio-temporal diverso —, serviram ao pintor para introduzir uma temática melancólica de distâncias, de horizontes perdidos, de êxtases longínquos ou de ausências e, sobretudo, de uma inquietante estranheza. E, ainda, para inscrever a pintura de uma dimensão efectivamente poética e já não, como era do uso naturalista, literária, ilustrativa. 

Em A Vida, há uma dimensão indizível, como vimos, que decorre da sua estranheza. E a estranheza vem precisamente da presença simultânea, e até contraditória, de representações alusivas a vários tempos e a vários espaços. É nisso que aquela se presentifica, mas é através disso também que a obra se faz singular, ao estabelecer sem aviso, por assim dizer, um corte profundo, senão definitivo, com a tradição naturalista que se contava, da parte do pintor, ser capaz de continuar. Por pertença a um meio e por não se esperar, por então em Portugal e no Porto, mais nada de um pintor. 

Se a Misericórdia não havia compreendido o seu Ecce Homo foi pelas mesmas razões. A pintura de Carneiro apontava para uma dimensão alucinatória, descrente da realidade, de sentido transfigurado, que não podia facilmente encontrar eco, fora de um pequeno círculo de amigos e de admiradores, numa realidade cultural progressivamente empobrecida no país. 

E, assim, o país mítico e místico que se sonhou nas páginas por vezes quase delirantes de A Águia, não era senão o reverso idealizado do país que de facto não havia. Uma espécie de sebastianismo levado aos seus limites, em desespero de haver, deveras, uma Pátria.

 

Bibl.: Bernardo Pinto de Almeida, António Carneiro, Lisboa, Caminho, 2005; José-Augusto França, António Carneiro. 1872-1930, Porto, Museu Soares dos Reis, 1973.

 

Bernardo Pinto de Almeida