Em grande parte contemporânea da aventura criativa pessoana, a trajectória literária de Afonso Lopes Vieira (1878-1946) revela-se essencialmente tangencial àquela, instalando-se entre ambos os autores um injustificado silêncio, apenas pontualmente interrompido pela confrontação polemística. A história deste desencontro poderá porventura ser relatada à luz daquele «litígio das modernidades» em que, em coabitação mais ou menos tensa, intervêm os esteticismos finisseculares, os neo-romantismos primonovecentistas e as vanguardas modernistas, num processo de «relacionação oblíqua» do modernismo de Orpheu com o legado simbolista-decadentista finissecular (J. C. Seabra Pereira, «A condição do Simbolismo em Portugal e o litígio das modernidades», Nova Renascença, nº35-38 (1989-1990), p. 148).

Com efeito, como observou já Cristina Nobre, «quando se procura ligar a figura literária de Afonso Lopes Vieira às grandes figuras da geração de Orpheu suas contemporâneas, fica-se com a ideia de relações não conclusivas» (Cristina Nobre, «Afonso Lopes Vieira: notas sobre os (des)encontros entre gerações», Colóquio/Letras, nº155/156 (Janeiro-Junho 2000), p. 167). E isto apesar de a coincidência de interesses artísticos (e.g. a pintura dos Primitivos) e mesmo de itinerários estético-literários (note-se, a este propósito, a flagrante antecipação que constitui o recurso à técnica interseccionista na novela Marques, de 1903), que parecem aproximar Lopes Vieira de algumas das figuras de proa das lides modernistas (Almada, por exemplo), tornarem este insulamento ainda mais incompreensível. Ambos os poetas se encontram, por exemplo, nas páginas d’ A Águia portuense: em 1912, Lopes Vieira aí publicará poemas como «O pucarinho», «O lavrador» e «À lareira»; nesse mesmo ano, estrear-se-á Pessoa, também nas páginas do órgão renascentista, como crítico de fina intuição analítica, assinando o ensaio «A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico».

Se não as dissidências de rumo estético, o acrimonioso opúsculo intitulado «Naufrágio de Bartolomeu», que Fernando Pessoa dá à estampa no número inaugural da revista Teatro, em 1 de Março de 1913, não terá deixado de ensombrar a possibilidade de ambas as personalidades virem a entabular um diálogo criativo. No ano anterior, publicara Lopes Vieira o seu Bartolomeu Marinheiro, uma reescrita ad usum delphini da epopeia marítima de Bartolomeu Dias, por meio da qual perseverava na sua campanha de endoutrinação nacionalista das camadas mais jovens. Apodando o autor do Amadis de «espécie de adido à pedagogia» e de «S. Francisco da Livraria Ferreira», Pessoa dirige uma impiedosa diatribe à «baba pedagógica» subscrita por Lopes Vieira, acusando-o de, com a sua vulgata patriótica, imbecilizar o público leitor infanto-juvenil, mas não deixando, ainda assim, de ressalvar que «a fama que o sr. Lopes Vieira tem, ex-ganhou-a dignamente, porque foi com uma obra bela, e por vezes grande, que se enfameceu» («Naufrágio de Bartolomeu», in Fernando Pessoa, Crítica. Ensaios, artigos e entrevistas, Lisboa, Assírio e Alvim, 1999, p. 79). De entre essa obra, já por essa altura consideravelmente copiosa, Pessoa destaca as composições poéticas incluídas em Ar Livre e O Poeta Saudade. Ora, pressente-se, na inflamada censura pessoana, a repugnância que lhe merecia um meio literário promiscuamente paroquial, que insistia em incensar vitaliciamente uma camarilha de poetas áulicos, da qual seguramente constava o nome de Lopes Vieira. Que, em muito, foram motivações extraliterárias as que originaram as cáusticas apreciações de Pessoa torna-se evidente a partir da leitura das cartas que, nesse mesmo ano e aludindo ao incidente do Bartolomeu Marinheiro, o poeta dirige a Álvaro Pinto, um dos directores d’ A Águia: «Eu explico tudo isto. Há aqui várias coteries (meras e reles coteries) que nos fazem uma guerra esquerda e assolapada. Uma delas – a do João de Barros, Sousa Pinto, Joaquim Manso, etc. – estende-se até incluir o Lopes Vieira e (parece-me) até enganchar, em Coimbra, gente que espiritualmente é o mais Renascença possível» (Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio e Alvim, 1998, p. 87).        

A leitura rectificativa do que se tem precipitadamente tomado como episódio revelador de um descaso geracional e estético-programático – numa contraposição simplística de continuidade e ruptura – permitirá talvez discernir nexos insuspeitados a coligar os esteios poéticos da tradição e da modernidade. Ganharia, pois, a obra de Pessoa (e o inverso é, também, verdadeiro) em ser lida, em múltiplas das suas dimensões, à contraluz dos escritos – sobretudo os de intenção declaradamente doutrinária – de Lopes Vieira. A muito glosada divisa vieiriana de «reaportuguesar Portugal tornando-o europeu» (que o autor, com afã, distingue do patriotolismo), por exemplo, não se encontra longe do «nacionalismo cosmopolita» propalado por Pessoa: «Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. (…) O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa» («Entrevista sobre a arte e a literatura portuguesas», in Fernando Pessoa, Crítica. Ensaios, artigos e entrevistas, p. 197-98). Na mesma linha de pensamento, não será despropositado aproximar o sebastianismo consciente, preconizado por Lopes Vieira, do misticismo sebastianista de Pessoa, relembrando a sedução que sobre ambos exerceu a mitologia do Encoberto, bem como uma imaginação historicista de matriz carlyliana que celebra a excepcionalidade vibrante e inimitável do herói. Em ambos se intui, finalmente, um panfletário patriotismo linguístico que, se em Lopes Vieira traduz sobretudo um idiossincrático ethos nacional, será, em Pessoa, chamado a escorar o prodigioso projecto de um império do espírito. E é talvez nesse nacionalismo profético, verdadeira cosa mentale, que em muito exorbita o afecto cândido de Vieira à piquena pátria, que Pessoa irá alicerçar a sua genial singularidade. 

 

Referências bibliográficas:

Cristina Nobre, «Afonso Lopes Vieira: Notas sobre os (des)encontros entre gerações. Apontamentos para uma edição genética de Bartolomeu Marinheiro», Colóquio/Letras, nº155/156 (Janeiro-Junho 2000), pp. 167-178.

José António Gomes, recensão a «Bartolomeu Marinheiro e Animais Nossos Amigos, Afonso Lopes Vieira (texto) e Raul Lino (ilustração), Expresso, «Cartaz», 17 de Abril, p. 18.

Manuela Parreira da Silva, «Fernando Pessoa, jornalista anónimo. A propósito de um artigo não assinado», Tabacaria, nº1 (Verão 1996), pp. 59-61.

 

Paulo Alexandre Pereira

Universidade de Aveiro