Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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Publicado no nº 36 da revista Presença (de Novembro de  1932), o poema “Autopsicografia” (no original, datado de 1 de Abril de 1931), é uma ars poetica e enquanto tal uma das peças fundamentais da poética do fingimento na poesia de Fernando Pessoa. Composto por três quadras de versos heptassílabos, a sua leitura tem sido frequentemente reduzida ao eco do seu primeiro verso, constituído por uma frase completa e monoproposicional cuja forma lógica é a de  uma definição e parece valer como uma fórmula ou uma expressão lapidar que enuncia uma propriedade essencial do poeta: “O poeta é um fingidor.” O seu valor de declaração e o facto do termo definido ser uma 3ª pessoa parecem dotar de um valor de generalidade a declaração do sujeito implicado pelo título do poema - auto-psico-grafia. No sintagma nominal, “o poeta”,  o definido poderia ter um valor de demonstrativo ([Este] poeta), mas pode rambém ser utilizado na representação da classe dos poetas ([Todo o] poeta). Fernando Pessoa sabia que outros poetas não aceitariam esta sua poética; mas a sua declaração mantém-se com a força de um parti pris autoral.

 

Seja como for o verso, a frase e a proposição dizem a radicalidade do fingimento. Enquanto acção “própria” do poeta; enquanto modo de ser da poesia ou da actividade poética.  O  fingimento constitui-se e declara-se radicalmente, por um lado contra a poética da sinceridade dos autores da Presença; e por outro lado vem numa tradição que podemos reportar quer a Nietzsche, quer a uma série de poetas e outros autores  que podemos associar a uma explícita poética da impessoalidade e situar seja no início da modernidade estética (ainda nos fins do séc. XIX, como Mallarmé) seja ao modernismo (já no 1º quartel do séc.XX, como Proust, Valéry e Eliot).

Num texto sobre a “verdade e a mentira em sentido extra-moral”, daqueles em que defende a retoricidade inescapável da linguagem, Nietzsche depois de denunciar a verdade  (da filosofia) como um “erército de tropos ( como a metáfora, a metonímia e outros) que se ignora, afirmará

 

Um outro poema, “Isto”, publicado pela 1ª vez no nº  38 da Presença (de Abril de 1933) e na generalidade das edições colocado imediatamente após “Autopsicografia”, pode ajudar-nos a interpretar o fingimento e induz-nos a construir uma micro-narrativa da sua situação de enunciação. É de novo uma ars poetica que parece envolver uma explicação da anterior e que corrige um erro de leitura cometido pelos seus leitores: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo que escrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração.” O que aqui é recusado como um erro ou incompreensão do fingimento poético é a equivalência entre fingir e mentir no plano ético ou afectivo. Fingir ou mentir poeticamente é fruto de um sentir imaginativo. Em poesia, fingir resulta do uso da imaginação (reprodutora e/ou criadora) e não do coração. O último verso da 3º quintilha e do poema procede a uma curiosa “divisão do trabalho” entre escrita e leitura: “Sentir? Sinta quem lê!”. Escrever poesia é imaginar, sentir é a tarefa do  leitor. Neste último verso do poema “Isto”, podemos apreender a afinidade com o pensanento de Valéry, quando este escreve em “Poésie et  pensée abstraite”: “Un poète [...] n'a pas pour fonction de ressentir l'état poétique: ceci est une affaire privée. Il a pour fonction de le créer chez les autres.” (Variété V, 138). a afinidade passa pela impessoalização do poeta em favor da 'objectividade ideal' do poema e da sua eficácia sobre o leitor.

 

Mas com tudo isto apenas indicámos algumas condições de possibilidade da significação de  “fingimento”.  E o que é facto é que o poema “Autopsicografia” continua. E o que a seguir se escreve, dificilmente se pode reduzir a uma repetição do já dito. Os restantes três versos da 1º quadra trazem uma modulação importantíssima à configuração do fingimento, porque aparentemente contraditória. A paráfrase pode aqui deixar-nos perto do texto do poema e permitir o controlo da eventual distância interpretativa. O que esses versos dizem é que o poeta finge e o máximo de fingimento ocorre quando se finge uma dor deveras sentida por quem finge. A sintaxe obriga-nos a ler assim: “finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente.”// Fingir a qalidade de dor de uma dor que deveras se sente é aquilo que se atinge quando  o  fingimento é mais completo. Por mais aporético que isso possa parecer, o poeta é mais poeta, porque mais fingidor, quando consegue fingir uma dor que deveras  (de verdade) sente. O que seja fingir uma dor verdadeira e que isso represente um fingimento maior é o que há que compreender. O poeta que o é enquanto fingidor não pode limitar-se a confessar ou exprimir a dor que deveras sente. Ele em de “trabalhá-la e, no limite, substitui-la por outra que possa estar no lugar da dor assim escondida ou de funcionar como ela. Eliot é aqui o poeta que nos pode ajudar. Por um lado, no ensaio “Tradição e talento individual”, escreve: “A tarefea do poeta não é procurar novas emoções, mas usar as comuns e, ao transformá-las em poesia, exprimir sentimentos que não figuram de todo nas emoções originais. E as emoções que ele nunca experimentou servirão o seu fim tão bem como as que lhe são familiares”. A diferença aqui entre  Pessoa e Eliot pode agora ser melhor circunscrita: Pessoa considera que o fingimento é maior quando se parte de uma dor que se conhece, porque é maior o trabalho artístico ou poético de a suscitar no poema. Por outro lado, a noção de “correlativo objectivo”, exposta por Eliot no ensaio sobre “Hamlet” (1919), dá-nos uma versão muito próxima desse trabalho que Pessoa toma como necessário: “O único modo de expressar emoção na forma de arte é descobrindo um «correlativo objectivo»; por outras palavras, um conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de  acontecimentos que será a fórmula dessa emoção específica; de tal maneira que quando os factos exteriores, que devem resultar em experiência sensorial, são facultados, a emoção é imediatamente evocada”. É justamente nessa constituição de objectos, situações e cadeia de acontecimentos, que devem resultar em experiência sensorial, que reside a objectvidde susceptível de evocar uma emoção. E essa é também uma das dimensões da eficácia do poema enquanto “objecto ideal” (Husserl).

 

Mas o poema não repousa e, na segunda quadra, descreve o que se passa na leitura, na qual o poema escrito se efectua. Os leitores ao lerem “recebem”, “encontram”, (re)constroem uma dor lida, uma dor que só existe ou começa por existir na leitura;uma dor descoberta ou inventada pela leitura. Essa dor que lêem é uma dor que sentem ( de tal forma que em certa medida sentir bem o poema é lerem bem essa dor (que descobrem ou inventam).  E contudo, essa dor não coincide, não é exactamente nenhma das duas que o poeta teve, “mas só a que eles não têm”, até lerem o poema. Interessa agora contar as dores e compreender o que é aqui ter (ou não ter) uma dor e sobretudo entender qual a diferença entre fngir, sentir e ter uma dor.

 

As dores ou as formas de uma dor, se contarmos as ocorrências da palavra no poema, são múltiplas: Há (i) a dor que o poeta finge que é dor, e (ii) a dor que deveras sente; uma e outra são as duas que ele teve (ou conheceu como dores); há depois (iii) a dor lida, e (iv) a dor que através dela, os leitores sentem bem que não têm. Se quisermos podemos aceitar que há ainda (v) a -dor escondida na palavra fingidor, que nos leva a entender o poeta como aquele que finge dor

 

A multiplicidade das dores funciona aqui como um efeito da assimetria entre emissor e receptor na co-enunciação do poema e é uma maneira de indicar a irrevogável pluralidade do sentido. Mas o que sobretudo interessa é que faz parte da eficácia do poema a possibilidade de o leitor (re)conhecer na dor lida, uma dor que não tem, ou seja de conhecê-la como não figurando no seu reportório de dores. A leitura supõe não apenas uma experiência de leitura, mas uma experiência de vida sobre a qual o poema (enquanto escrita-e-leitura) retroage. Assim, ou relemos estes versos apenas como meros “gracejos de expressão” (“lúgubres” lhes chama Pessoa no “Fausto”) ou teremos de admitir que o poema não apenas provoca emoções desconhecidas, como é, no limite, um reconfigurador antropológico.

 

A. A. Lindeza DIOGO e Rosa S. MONTEIRO, Um Medo por Demais Inteligente. Autobiografas Pessoanas, Braga, Angelus Novus, 1995; T.S. ELIOT, Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa, Guimarães editores, s/d [1963]; J. SENA, O Poeta é um Fingidor, Lisboa, Ática, 1961.

 

Manuel Gusmão