A construção da mais famosa arca da civilização ocidental foi ditada pelo combate à corrupção: «A Terra estava corrompida diante de Deus e cheia de violência. Deus olhou para a Terra e viu que ela estava corrompida, pois toda a humanidade seguia, na Terra, os caminhos da corrupção» (Génesis 6:11-12). A arca, além de dois animais de cada espécie, leva Noé e a sua família: «O Senhor disse, depois, a Noé: “Entra na arca, tu e toda a tua família, porque só a ti reconheci como justo nesta geração.”» (Génesis 7:1). Adiante Deus dirá a Noé e aos seus: «“Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra”» (Génesis 9:1).

A penúltima fotografia incluída no livro de Maria José de Lancastre Fernando Pessoa. Uma fotobiografia [Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1981] ostenta a legenda «A Arca dos Inéditos». Vê-se na imagem a arca, com a tampa aberta, cheia de envelopes e tendo por pano de fundo uma estante preenchida de livros. É a última imagem «autêntica» da linha biográfica do volume, já que a fotografia derradeira em absoluto é a reprodução de um óleo de Costa Pinheiro, A caneta do poeta Fernando Pessoa, e nessa medida já faz nitidamente parte da recepção da vida e da obra do autor, quer dizer, já pertence ao nosso tempo. A própria autora da fotobiografia estabelece uma fronteira nítida entre o estatuto das duas imagens: a primeira aparecendo antes da «Lista do material iconográfico», do rol das «Obras de que foram extraídos os textos que acompanham as fotografias» e do «Índice onomástico das pessoas constantes das fotografias»; a outra surgindo já depois destas listas, em jeito de posfácio.

De acordo com a memória de Maria Aliete Galhoz, que teve a oportunidade de estudar este espólio antes de a Biblioteca Nacional o ter acolhido, a arca albergava «primitivamente sacos de papel e embrulhos atados com cordéis, contendo os seus escritos num primeiro delineamento de classificação, e tendo escrito por fora, de seu punho, o teor dos conteúdos, às vezes titulado, outras vezes não» [M.ª Aliete Galhoz, «A fortuna editorial pessoana e seus problemas: o caso da poesia», Fernando Pessoa, Mensagem. Poemas Esotéricos, ed. crítica coord. por José Augusto Seabra, s.l.: Archivos /CSIC, 1993,p.216]. Por outro testemunho, que procura apresentar um objecto complexo no momento em que se inicia a inventariação do espólio pessoano, depreende-se que a palavra “arca” se pode referir a três recipientes diferenciados do espólio do autor: 1 - uma arca de grande dimensão, contendo 91 envelopes numerados; 2 - uma mala pequena onde se encontravam 25 pacotes (22 numerados e sendo os outros três um saco de plástico, uma pasta de cartão e um embrulho); e 3 - 25 envelopes numerados, guardados num armário. Adopto a descrição, que parafraseio pouco, das inventariadoras do espólio quando este se encontrava na casa de D. Henriqueta Madalena Nogueira Rosa Dias, irmã de Pessoa [cf. M.ª Laura Nobre dos Santos, Alexandrina Cruz, Rosa M.ª Montenegro Matos e Lídia Pimentel, «A inventariação do espólio de Fernando Pessoa: tentativa de reconstituição», Revista da Biblioteca Nacional, s.2, vol.3, n.º3, Set.-Dez. 1988,p.202]. Nesta síntese, percebe-se como o termo “arca”, mesmo no seu sentido alegadamente mais neutro, é já uma construção figurada pois não corresponde a um único artefacto.

Mais do que um continente; mais do que um sentido para o conteúdo.

Por metonímia estrita, a palavra “arca” é usada para serem globalmente referidos todos os documentos autógrafos e outros antes depositados no interior da arca (e, claro, da mala e dos envelopes alojados no armário mencionado antes). Por metonímia alargada, é usada para referir todos os documentos que, antes propriedade de Pessoa, estão hoje dispersos pela Biblioteca Nacional (Espólio 3, Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea: 27.543 folhas e 6 documentos distribuídos por 105 caixas; cf. http://acpc.bn.pt/espolios_autores/e03_pessoa_fernando.html), Biblioteca Pública Municipal do Porto (espólio Alberto de Serpa), Casa Pessoa (designadamente os livros pertencentes à biblioteca particular do autor), herdeiros e outros particulares. Estes dois sentidos podem ser convocados para se falar sobre a relação que os escritos conservados de Pessoa mantêm com (1) os processos de criação literária e (2) sobre a relação entre esses documentos e a edição dos escritos pessoanos.

Quanto ao primeiro aspecto, estamos ainda numa fase propriamente incoativa, pois são escassos os casos de análise genética assente em documentação de espólios. Mesmo os aparatos genéticos das edições lançadas pelo Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição da Obra Completa de Fernando Pessoa têm sido genericamente ignorados. Uma modalidade particular da crítica genética impõe-se quando muitos escritos do Espólio estão representados por apenas um testemunho, daqui decorrendo que a possibilidade de construir um dossiê genético reside na pesquisa de fontes. O trabalho seminal de Jerónimo Pizarro constitui neste particular a experiência de maior relevo [Fernando Pessoa, Escritos sobre génio e loucura, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006].

Quanto ao segundo aspecto, tem-se vindo a registar desde meados do século passado até ao presente um número interessante de edições dependente do acesso à “arca”. Este recurso directo aos documentos deixados por Pessoa para a elaboração de edições apresenta alguns traços caracterizadores que já se encontram prefigurados no relato bíblico mencionado no início deste verbete.

De modo análogo ao que surge relatado no Génesis, para alguns editores os escritos guardados por Pessoa (já o uso do verbo “guardar” é problemático) seriam como que o resultado de uma selecção deliberada, o que ficaria assim disponibilizado post mortem na sequência de um juízo autoral. Esta tese costuma ser invocada por outras palavras para justificar a publicação de documentos do espólio de Pessoa conservado na Biblioteca Nacional e noutros lugares. Assenta na ideia de que todos os documentos deixados por um escritor após a sua morte são oferecidos à comunidade e tem a sua tradução na fórmula “quod scripsi, scripsi”. Uma tal ideia, para ser entendida em todas as suas implicações, suporia que cada escritor tem conhecimento antecipado do momento da sua morte e prepara a posteridade também em sentido arquivístico; ou, em alternativa, suporia que, desconhecendo o momento da sua morte, mas ciente de que a vida tem fim, cada autor orienta a sua vida de modo testamentário. Isto não pode ser decretado a respeito de todos os escritores e não se aplica inteiramente ao caso de Pessoa (o que é demonstrado pelo teor de muitos dos documentos conservados), apesar das suas conhecidas iniciativas tendentes à preparação da posteridade. Insuspeita nesta matéria, Almuth Grésillon afirma que é impossível saber por que um certo escritor guarda os seus manuscritos [Éléments de critique génétique, Paris: PUF, 1994,p.89]. Ou seja, a existência de documentos autógrafos é em si um problema e dela nem decorre naturalmente a necessidade de os conservar, nem decorre – derivação ainda mais artificial – a necessidade de os editar e publicar.

De modo também semelhante ao texto do Génesis no ponto em que se alude à natureza não corrupta do que se encontra na arca e à fonte da procriação, os documentos do espólio pessoano poderiam constituir uma espécie de pura materia prima de onde emanariam as múltiplas edições que difundem os textos de Pessoa. Este pensamento, consubstanciado no princípio de que o que o autor publicou em vida não chega para obtermos uma imagem completa da sua obra, animou projectos de edição e publicação muito distintos. Os mais marcantes serão provavelmente a heterogénea colecção da Ática, iniciada em 1942, com a participação de estudiosos tão diferentes quanto João Gaspar Simões, Jorge Nemésio, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; o Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição da Obra Completa de Fernando Pessoa, coordenado por Ivo Castro, que publica na Imprensa Nacional – Casa da Moeda; o Instituto de Estudos em Torno do Modernismo, dirigido por Teresa Rita Lopes, que tem ultimamente canalizado as publicações para a editora Assírio & Alvim. Qualquer um destes projectos (é verdade, com graus e por modos diferenciados) supõe que a conformidade com o que o espólio apresenta permite acabar com a corrupção textual.

No entanto, a simples existência de abordagens diferentes materializada nestes projectos e noutros de menor visibilidade garante que a arca, resolvendo várias questões, suscita interrogações que não são necessariamente resolvidas de forma consensual. As questões resolúveis, com respostas aperfeiçoáveis e em que o grau de dissensão, a prazo, pode ser reduzido são de natureza decifratória. Apesar de se tratar de questões técnicas, e portanto passíveis de sistematização, o campo bibliográfico a elas afecto é reduzido e nele avulta o artigo de Luís Prista «Sombras e sonhos na fixação de quadras de Pessoa», Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 11, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 197-213.

As questões não-resolúveis, com respostas em antagonismo necessário e em que o grau de dissensão, mesmo a prazo, permanecerá alto são de natureza teórica. Um exemplo de uma questão deste tipo é o debate, na fixação crítica, entre a escolha da última variante não recusada como pertencente ao texto-base e, em contrapartida, a adopção da redacção linear naqueles (muitos) textos que não apresentam uma redacção fechada. A primeira escolha é defendida por Ivo Castro no âmbito da atestação documental do percurso criativo do autor e é suportada pelo entendimento de que a redacção linear, uma vez acompanhada por uma alternativa, torna-se ela própria uma alternativa. A segunda escolha, defendida por Teresa Rita Lopes, é baseada no entendimento de que a redacção linear, se for acompanhada por uma alternativa, só perde protagonismo caso se encontre outro testemunho do mesmo texto no qual se encontre uma nova redacção linear. Quis Richard Zenith acrescentar a estes posicionamentos uma terceira via que procurou consubstanciar na colecção «Obra Essencial de Fernando Pessoa». Esta terceira via consistiria em amparar a fixação crítica por meio de uma escolha subjectiva, sem preconceitos quanto ao privilégio a conceder à primeira variante ou à última variante (e com a expressão “última variante” indico a minha posição neste debate). Parece-me, contudo, que a fundamentação oferecida por Richard Zenith, chamando justamente a atenção para uma série de casos em que Pessoa terá dado sinais que permitem detectar a sua preferência por uma de entre diferentes variantes, não representa uma abordagem na essência diferente daqueles dois posicionamentos, mas sim da aplicação automática dos princípios que lhes subjazem. Nessa medida, admito que talvez seja melhor não falarmos de uma terceira via.

De modo talvez inesperado, o que no passado recente mais terá contribuído para esclarecer disputas teóricas como esta, e também dúvidas de decifração como as mencionadas antes, é o espólio de Fernando Pessoa na Biblioteca Nacional Digital (http://purl.pt/1000/1/), com organização de Manuela Vasconcelos. Inesperado porque, não estando em competição com as formas mais habituais de difusão do texto de Pessoa, permite monitorizar as edições existentes no mercado: as reproduções digitais são a cores, o tamanho pode ser ampliado consideravelmente e estão acessíveis a qualquer leitor interessado. Dado mais importante para a questão teórica, o projecto digital permite que o leitor ganhe fenomenologicamente consciência do estado e estatuto de cada testemunho conservado. Por um lado, isto contribui para enquadrar as disputas sobre a lição-base, para aqueles casos em que o autor não seleccionou uma de entre as diversas variantes, no tempo em que o livro era o meio único de transmissão de edições. Por outro lado, contribui para que se discutam novas questões, por exemplo de foro jurídico. Veja-se o conflito possível entre a autenticidade e integridade da obra do autor, que se torna evidente quando documentos incoativos e textos publicados em vida são submetidos aos mesmos modelos de transcrição e de publicação. O Espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional Digital funciona nestas circunstâncias como um importante memento da escrita antes de ela aparecer servida ao leitor com o estatuto de obra.

 

João Dionísio