Há um modo «sociológico» de ser da voz heteronímica. O sujeito colectivo da Mensagem («Nós, Portugal») é um exemplo disso. Mas o melhor exemplo é o que se lê em 1928 no final do folheto O Interregno, referindo as características próprias: «O que nele escrevemos [...] o distingue, na amplitude e precisão dos conceitos, na lógica do desenvolvimento, e na concatenação dos propósitos, de qualquer escrito político até hoje conhecido. Nem há hoje quem, no nosso país ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. Disto nos orgulhamos» (C 403).

A qualidade desmesurada deste sujeito torna-se evidente se o aproximarmos desse pensador messiânico e politicamente empenhado que encontramos já nos artigos de A Águia de 1912. É, nos dois casos, a manifestação de um intérprete hiperbólico da vontade e do sentir portugueses. Ou, então, poderia parecer, como o escreveu João Gaspar Simões em Temas e O Mistério da Poesia, que se trata de uma funda marca de narcisismo. A esta acusação responde Pessoa (carta a João Gaspar Simões de 14 de Dez., 1931) assim: «A frase pertencia ao Interregno na sua forma original de manifesto anónimo. O Ministério do Interior impediu a saída do manifesto, a não ser que viesse assinado e convertido em livro – isto é, folheto –, pois assim não era (então) preciso ir à censura, que, tendo sido consultada sobre o manifesto, pusera várias objecções à sua saída. Na revisão que fiz, de muito mau humor, pois me aborreceu muito tudo aquilo das autoridades, esqueci-me de tirar essa frase, que, sendo uma insolência de blague no manifesto anónimo, é nem mais nem menos que uma nota de mau gosto – género Shaw ou D'Annunzio – no folheto assinado. Mais nada» (C II 260). São estas, pois, as qualidades de sentido do anonimato: um jogo mais livre com as referências de sujeito.

De resto, mais tarde, numa «Nota Biográfica» de 1935, será o texto inteiro que será posto em questão: «O folheto O Interregno, publicado em 1928, e constituindo uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito» (EAARP 204). O que bem se compreende, à luz das suas últimas posições políticas anti-salazaristas.

 

 

Fernando Cabral Martins