Arquivo virtual da Geração de Orpheu

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António Joaquim Tavares Ferro, jornalista, cronista, ficcionista, poeta e política, surge, desde o início, ligado ao projecto da revista Orpheu, trazido decerto por Sá-Carneiro de quem fora condiscípulo dos tempos do liceu. É,  no entanto, o único do grupo fundador que aí não chega a colaborar literariamente. Deve-se isso ao facto de ser considerado ainda muito jovem e sem maturidade «paúlica» para tais cometimentos, conforme a correspondência entre Pessoa, Côrtes-Rodrigues e Sá-Carneiro deixa perceber. Assim sendo, acaba por ser «aproveitado» para figurar como editor da revista. A circunstância de ser ainda menor, torna ilegal o cargo por si desempenhado, o que é torna ainda mais excitante a sua colaboração. Num texto evocativo de Orpheu, Pessoa esclarece que Sá-Carneiro desconhecia a menoridade do  «menino Ferro» (como este muitas vezes se lhe refere) e por isso «ficou contentíssimo com a nova ilegalidade. “E o Ferro não se importa com isso” perguntei.” O Ferro? Então você julga que eu consultei o Ferro?” Nessa altura desatei a rir. Mas de facto, informou-se o Ferro e ele não se importou com a sua editoria involuntária nem com a ilegalidade dela» (OPP II 1326). De qualquer modo, em 1914, Ferro estreara-se já com um livro de quadras, a meias com Augusto Cunha, seu futuro cunhado, Missal de Trovas, livro que inclui comentários de João de Barros, Lopes Vieira, Júlio Dantas, e dos próprios Pessoa e Sá-Carneiro. E, em Abril de 1916, Ferro colabora, com Augusto de Santa-Rita (director), Côrtes-Rodrigues e Alfredo Guisado, na fundação da revista Exílio, onde Pessoa participa com Hora Absurda e a rubrica bibliográfica «Movimento Sensacionista». Constituindo embora um projecto nacionalista e um reatar com a tradição, que o desafio europeísta de Orpheu tinha interrompido, a Canção da Madalena sobressai. Apesar de incipientes, estes versos de A. Ferro, que fazem da mulher um símbolo erótico, misto de santa e prostituta, anunciam as suas duas conferências - As Grandes Trágicas do Silêncio (no cinema Olímpia, em 1-7-1917) e  Colette, Colette Willy, Colette (na Sociedade Franco-Portugaise, em 6-11-1920) -, onde enfatiza o corpo, «orgia pagã», e a beleza sensual-mítica de três estrelas do cinema mudo (Francesca Bertini, Pina Menichelli e Lyda Borelli); ou a pose mundana e imoral, «futurista» e escandalosa, e a «arte turbulenta» da escritora Colette. Anunciam também a apologia do prazer carnal, à margem de quaisquer moralismos, feita em Leviana (romance de 1921). O trazer da mulher para a ribalta constitui, sem dúvida, uma atitude ousada no contexto algo misógino de Orpheu e está em sintonia com o «programa modernista» de António Ferro, presente na sua Teoria da Indiferença (1920). Neste livro de aforismos à maneira dadaísta, «consagração do Artifício […] como forma de estar e sobreviver» ou «“teorização” da modernidade como forma de estar», no dizer de António Rodrigues (1995: 47 e 48), pode ler-se que «É muito mais belo dizer aquilo que nós não sentimos do que aquilo que sentimos.// A suprema vitória do artista é conseguir artificializar os sentidos», que «A Arte é a mentira da vida. A Vida é a mentira da Arte. A mentira é a Arte da Vida», mas também que «Na mulher de hoje, como na arte de hoje, o corpo é o simples pretexto do vestido». Este «livro-écrã», feito de paradoxos, ilustra bem a ideia de Ferro de que «A Arte Moderna é uma Arte de relâmpago, uma Arte que estabelece telegrafia com as Almas...» (1995: 45). E remete-nos para outra faceta pioneira do seu autor - o elogio do cinema, enquanto espectáculo do movimento, futurista por excelência.

António Ferro afirma-se assim, sobretudo no pós-Orpheu, como uma figura incontornável do modernismo. Não tanto pela qualidade intrínseca da sua produção literária e ensaística, mas sobretudo pelo seu contributo para a divulgação de um certo gosto moderno, pelo modo como tentou colocar os seus compatriotas «à la page» no espaço europeu. Para  Ferro foi uma espécie de missão ou de cruzada, que assumiu, quer do ponto de vista da sua obra escrita, quer no que se refere à sua obra de incidência cultural e política (esta, sem dúvida, bem mais controversa). Não faltou sequer, para um mais completo programa de acção, um manifesto à maneira dos de Almada ou Álvaro de Campos - Nós (1921) - no qual se apresenta como tardio porta-voz da sua geração. É, de facto, um manifesto um pouco já fora de moda, facto de que o próprio autor parece estar consciente, ao escolher como epígrafe uma frase de Cocteau: «L’avenir n’appartient à personne. Il n’y a pas de percurseurs, il n’existe que des retardataires». Sublinhe-se, porém, que Ferro procurara, no ano anterior, numa viagem a Itália, entrevistar Marinetti, tendo conseguido apenas trocar com ele algumas breves palavras de circunstância. E embora nunca se tenha declarado futurista, é nítida a sua inspiração, quer no referido manifesto, quer nas duas principais conferências que realiza no Rio de Janeiro e em S. Paulo, durante uma longa estadia no Brasil, em 1922, onde contacta com o movimento modernista brasileiro: A Arte de Bem Morrer, que começa assim: «A Vida é o Curso Superior da Morte. Durante a vida deve aprender-se, apenas, a morrer»; e A Idade do Jazz-Band, em que afirma a abrir: «Eu vivo na minha Época como vivo na minha Pátria, como vivo dentro de mim». Esta conferência terminava num verdadeiro «happening», com a irrupção no palco de uma orquestra de jazz e de uma mulher a dançar. Esta tendência para a teatralidade, para a pose mundana ou para a criação de efeitos de surpresa está quase sempre presente também em Ferro. É disto exemplo, a forma como resolve casar por procuração com Fernanda de Castro, durante a estadia no Brasil, onde é recebida pelo marido e logo «transformada» em declamadora, em recitais de poesia de novos autores portugueses e brasileiros por ele organizados. Ferro deslocara-se, aliás, ao Brasil, a convite de Lucília Simões e Erico Braga, cuja companhia de teatro realizava uma tournée naquele país. É aqui que estreia a peça Mar Alto, recebida com sucesso e muita controvérsia. Reedita-se, por assim dizer, o escândalo de Orpheu, com assobios e pateada na  première (10-7-1923) em Lisboa, após o regresso de Ferro a Portugal, e que culminaria com a sua proibição por imoralidade. O interesse de Ferro pelo teatro é genuíno. De há muito que alimenta o desejo de criar em Portugal uma sala-estúdio, à semelhança das que existem em Paris, aberta à produção de peças de vanguarda e à renovação da cenografia. Esse sonho concretiza-se em 1925, com o seu Teatro Novo, instalado no foyer do então Palácio Tivoli, cuja peça de estreia, Knock ou a Vitória da Medicina de Jules Romains, traduzida por Fernanda de Castro, é mal recebida pela crítica e por um público pouco aveso a grandes novidades. E a segunda peça, Uma Verdade para Cada Um, de Pirandello, dita a morte do projecto. O seu gosto pelo teatro encontrará, no entanto, um novo modo de se desenvolver, alguns anos mais tarde, quando na qualidade de director do Secretariado Nacional de Propaganda, cargo que assume em 1932, cria o Teatro do Povo, companhia ambulante que percorreria o país.

De divulgador do modernismo, Ferro (que nos tempos de Orpheu milita nas hostes democráticas de Afonso Costa…) passaria, em breve, a ideólogo do Estado Novo. A sua simpatia por ideologias ditatoriais começa por manifestar-se com a adesão à figura de Sidónio Pais, expressa num conjunto de artigos publicados em O Jornal, periódico sidonista, em 1919. A mitificação do chefe, a que aí procede, prenuncia a sua aproximação a Mussolini, cuja acção proteccionista e interventora na arte e cultura italianas  é apresentada como exemplo a seguir em Portugal, num artigo do Diário de Notícias (5-6-1930). E depois de um outro artigo no mesmo jornal, onde define todo um programa político em prol da animação do povo - «Como se pode modificar a alma dum Povo? Criando, talvez, fontes de vida, criando multidões alegres, criando multidões que se reúnam para construir e não para destruir… Construamos parques, estádios, inventemos cerimónias em que o povo encontre um pretexto para vibrar, estimulemos o desporto, protejamos o teatro, a pintura, o livro (…)» (7-5-1932) -, será convidado por Salazar para implantar a «política do espírito». A expressão é usada, pela primeira vez, pelo próprio Ferro no citado artigo e explicitada, numa edição do SPN de 1935 (A Política do Espírito e os Prémios Literários do Secretariado de Propaganda Nacional, pp.6-7), como uma forma de «fomentar o desenvolvimento da literatura, da arte e da ciência», de «acarinhar os artistas e os pensadores, fazendo-os viver numa atmosfera em que lhes seja fácil criar», mas também de «estabelecer e organizar o combate contra tudo o que suja o espírito». Apesar das suas muitas iniciativas em prol da cultura, a colagem a Salazar afasta-o irremediavelmente de uma parte dos seus pares da Presença, como é o caso de Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro que, admirando-o como figura alta do modernismo, lhe não perdoam a traição política. Ferro acabaria, porém, por ser enviado (ou exilado?) por Salazar para Berna e Roma, como Ministro de Portugal. Não deixa de ser curioso que o seu único livro de poemas (editado já depois da sua morte), se intitule Saudades de Mim.

 

 

Bibl.: António Ferro, Obras, 1.º vol. Intervenção modernista: teoria do gosto, pref. António Rodrigues, Lisboa: Verbo, 1987; António Rodrigues, António Ferro  na Idade do Jazz-band, Lisboa: Livros Horizonte, 1995.

           

            Manuela Parreira da Silva