Ângelo de Lima é certamente o caso mais trágico da “literatura de manicómio astral” de Orpheu, porque nele a loucura se apoderou do homem e não apenas da obra e do trabalho de criação. Fernando Pessoa refere em vários dos seus escritos a doença fundamental do homem moderno (“Em cada homem moderno há um neurasténico que tem de trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos incluídos na marcha das cousas públicas e sociais. A hiperexcitação passou a ser de regra”), doença que é também a sua e a da geração órfica (“Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental (...)”, regista no post-scriptum duma carta a Mário de Sá-Carneiro). Também o autor d’ A Confissão de Lúcio descreve reiteradamente a sua “zoina” nas cartas a Pessoa, e chega, numa delas, a tomar a loucura de Ângelo de Lima como termo de comparação com a sua. Mas a histeroneurastenia de Pessoa e de Sá-Carneiro, essa mistura de euforia e tédio que ambos relatam, é uma loucura encenada, dramática, ao passo que a loucura de Ângelo de Lima foi real, trágica.
A 1 de Julho de 1915, publicava o jornal República o seguinte testemunho de Amadeu Cunha: “A propósito do novo número de Orpheu recordava ontem A Capital o nome dum grande infeliz que andou muitos anos pelo Porto, donde me parece ser natural, e cuja vida bem ao contrario de ter sido uma boémia risonha foi alguma coisa de um longo calvário, um destino irmão de Glatigny. Talvez não falte aqui quem o haja conhecido ao menos como eu, nos primeiros tempos da sua neurastenia, em que, do Conde Ferreira, onde encontrara, no director, o Sr. Dr. Júlio de Matos, um amigo, colaborava com actividade na Geração Nova, de Júlio Lobato, quer escrevendo versos quer com desenhos que nada tinham de paulicos mas sobre os quais a inspiração duma musa de vesânica tristeza estendia já os seus véus (...)”.
Ângelo de Lima nasceu efectivamente no Porto, em 1872, sendo seus pais Pedro de Lima – também ele poeta, autor do livro Ocasos (1867) – e Maria Amália Azevedo Coutinho de Lima. Em 1882, ingressou no Colégio Militar de Lisboa, de onde acabaria por ser expulso, por “desacatos e atitudes incompreensíveis”. Regressou ao Porto em 1888, inscrevendo-se então na Academia de Belas Artes. Assentou praça e em 1891 foi enviado a Moçambique, tendo participado numa expedição militar a Manica. Regressou no ano seguinte, e em 1894 voltou a frequentar a Academia de Belas Artes do Porto. As revistas portuenses A Geração Nova (1894-95) e Revista Azul (1896) deram a conhecer alguns dos seus desenhos. Ainda em 1894, Ângelo de Lima foi internado no Hospital Conde Ferreira, onde passou quatro anos. Viveu depois no Algarve e em 1901 mudou-se para Lisboa. Em Dezembro desse ano, foi preso no promenoir do Teatro D. Amélia, “por proferir obscenidades” (como se pode ler no “Relatório sobre o estado mental de Ângelo de Lima”, assinado por Miguel Bombarda), e, na sequência desse episódio, foi internado no Hospital de Rilhafoles, Aí permaneceu durante vinte anos, até à data da sua morte, em 1921.
Alguns destes dados biográficos são evocados numa breve “Autobiografia” (publicada em Porão da Vida de Albino Forjaz de Sampaio e no nº 4 da revista Litoral), onde o poeta alinha os principais marcos da sua vida (a data e o local do nascimento, a infância, o tempo do Colégio Militar, a frequência da Academia de Belas Artes do Porto, etc.), mas onde procura sobretudo reconstituir a sua identidade, provar aos outros a sua capacidade de se compreender e diagnosticar os modos de desvio psíquico que em si mesmo reconhece. O “Relatório sobre o estado mental de Ângelo de Lima”, da autoria de Miguel Bombarda, descreve o “fundo mental mórbido do poeta”, especifica as manifestações da sua alienação e chega a mencionar a “Autobiografia” como mais uma prova da loucura do infeliz poeta. Mas o doente de Rilhafoles escreve também o seu “relatório”, na forma de um relato autobiográfico: e se essa “Autobiografia” é um texto pungentemente caótico no plano sintáctico (“Na minha mocidade, grandemente atento mentalmente à vida, que reflexionada com um certo prazer meditativo, era um indolente materialmente, conservando-me horas imóvel quase na contemplação e reflexão sobre um só objecto, brinquedo ou espectáculo da natureza, atento fixo” (...)), ela é afinal um exercício de recentramento (“de correcção em censo, da mentalidade”), com um propósito probatório e rectificativo. É também a expressão da revolta do poeta contra “a determinação tão arbitrária desse acobertado com a autoridade legal” que o declarou alienado, e o testemunho do sofrimento que lhe causaram os anos de internamento psiquiátrico.
A poesia de Ângelo de Lima encontra-se reunida em volume graças a Fernando Guimarães, que organizou, prefaciou e anotou as Poesias Completas para a edição da Inova, em 1970, e depois para a edição da Assírio e Alvim, em 1991. São para cima de quarenta os poemas aí compilados, antes dispersamente publicados em revistas e jornais como A Geração Nova, A Arte, A Nação, Diário da Manhã, O Dia, A Ilustração Portuguesa, Orpheu (cujo nº 2 deu à estampa um conjunto de “Poemas inéditos” de Ângelo de Lima), Presença (que editou o soneto “Pára-me de repente o pensamento” no nº 13, o poema “O Mar...” no nº 46 e “Um inédito de Ângelo de Lima” no nº 1 da segunda série), Cancioneiro, Sudoeste, Litoral, e mais tarde Folhas de Poesia e Tempo Presente. Como nos diz Luiz Duarte Lima numa “Nota explicativa” incluída no nº 1352-3 de Seara Nova, Luís de Montalvor teria preparado um volume de poesias de Ângelo de Lima, para as edições Ática, “mas, conforme a indicação de João Gaspar Simões, tal original desapareceu com a morte daquele editor-poeta”.
Os primeiros poemas de Ângelo de Lima revelam as influências cruzadas do Ultra-Romantismo e do Simbolismo, vinculados como estão a uma estética sepulcral e a uma tonalidade melancólica e dolorida. Assim acontece em “Dizem os Sábios que já nada ignoram”, “A meu Pai (no Santo Dia dos Finados)”, “Inês de Castro” e “Sozinho”. Este último constitui um “testamento” poético com algumas semelhanças formais com os de António Nobre (“Balada do caixão”) e de Mário de Sá-Carneiro (“Fim”), mas sem nenhuma encenação dandy ou funâmbula, antes comovendo o leitor pelo tom sério e pela ideação de um fim apenas chorado, sem nenhum convencionalismo, pelos elementos naturais: “Quando eu morrer m’envolva a Singeleza,/ Vá sem Pompa a caminho do coval,/ Acompanhe-me apenas a tristeza/ Não vá do bronze o som de val’ em val!// Chore o céu sobre mim de orvalho as bagas/ Luz do sol-posto fulja em seu cristal,/ Cantem-me o “dorme em paz” ao longe as vagas./ Gemente a viração entoe o “Amém”/ Vá assim té ermas, afastadas plagas.../ Lá...fique eu só!/ Não volte lá ninguém!”.
A par de poemas mais discursivos, de largo fôlego retórico (como os que glosam, em registo megalómano, figuras de rainhas ou cenários históricos), outros vão ao encontro da estética simbolista do “vago”, do “subtil”, do “complexo” (adjectivos de João Gaspar Simões a propósito do poema “Edd’Ora Addio...”), encadeando sugestões graças ao predomínio do sintagma nominal e a uma sintaxe entrecortada, inconfundível, pontuada de reticências e de exclamações (de que o poema “Viver” é o exemplo mais radical). Esse encadeamento de sugestões, por vezes desconexas, e essa sintaxe elíptica traduzem, em muitos poemas, o transe alucinatório, que corta as pontes com a realidade e cria uma realidade outra, delirante e incoerente a nível semântico. Perante ela, somos tentados a fazer, a contrario, um exercício de enquadramento racional (reconhecendo por entre os desvios lexicais e sintácticos alguns termos do dicionário e alguns versos “com sentido”); mas logo a apreendemos como realidade puramente artística, que em si mesma encontra legitimação. Assim, por exemplo, em “Edane! (À Lua)”, reencontramos o tópico romântico da lua, glosado de forma surpreendente e mesmo incompreensível (“Edane Clara e Santa.../Edane Pura!/ - Purfictrio do Símbolo de Prata... Erta Emmemor na Alma/ - Erta Hierata!/ Clareia Calma na Alta Noute Escura (...)”), mas dando azo a uma sequência de manchas impressionistas e a um jogo melódico que emancipam o poema das exigências da significação e lhe conferem justificação própria. O fascínio pela pura melopeia repete-se noutros poemas igualmente enigmáticos e é levado ao extremo em “Edd’Ora Addio... – Mia Soave!... (Aos meus Amigos d’Orpheu)”, onde a coerência semântica cede o passo a uma coerência da matéria fónica dos versos (graças ao encadeamento de sons, às aliterações, às pausas assinaladas por travessões e reticências, às repetições, etc.), que faz deste soneto um dos mais belos da obra de Ângelo de Lima.
Nessa obra abundam, aliás, as invenções lexicais, as invenções gramaticais e as invenções em matéria de escrita propriamente dita, para recuperarmos a classificação proposta por Christian Delacampagne no seu artigo “L’écriture en folie” (Poétique, nº 18): neologismos, palavras forjadas (por condensação, deslocamento, supressão ou acrescentamento de sons, etc.), termos provenientes de outras línguas, cadeias de equivalências fónicas, jogos de palavras (“Ó Noute Imensa pela Imensidão!”, no cântico “Neitha-Kri”), associações paratácticas mais ou menos desconexas, dupla adjectivação sem a vírgula separadora, uso de maiúsculas ao gosto paúlico e formas obsessivas de pontuação são traços inconfundíveis duma poesia que desesperadamente luta contra o vazio e contra o silêncio, que se prende a pontos fixos e se deixa arrastar pelo pormenor (como é próprio da escrita dos loucos, segundo Delacampagne), mais atraída pela forma sonora ou gráfica das palavras do que pelas ligações semânticas - rasto de uma viagem sem esperança de regresso nem de reintegração. Arrastado na sua vertigem, Ângelo de Lima deixou-nos, no entanto, uma genial representação do seu próprio fluir psíquico, inquieto e atormentado pelo sofrimento, no soneto “Pára-me de repente o Pensamento...” (que foi por vezes publicado com o título “Tédio”). Esse movimento louco, a cujo espectáculo o sujeito poético assiste (desdobrando-se e voltando-se sobre si mesmo) é dado pela imagem do cavalo lançado a galope, que por um instante se detém à beira do abismo e acaba por se lançar nele, sem remissão. Como assinalou Yara Frateschi Vieira, “o poema põe em cena três forças: o cavalo alucinado (a aceleração do pensamento), o freio da consciência e a dor, que provoca nova aceleração com consequente mergulho na “noite” (...). A tensão entre essas forças e o esforço que o conflito supõe, explicariam a escolha de uma forma fixa como o soneto para suporte poético: entre a alucinação e a consciência dela, o texto, com os seus limites pré-estabelecidos, mas também as suas repetições, aliterações e paralelismos, oferece uma âncora”. Essa tensão entre uma ordem formal e a desordem que ela descreve é um dos aspectos mais perturbantes do poema, mas a sua força vem também da metáfora continuada, verdadeira “concepção moldurante” da auto-representação da loucura na obra de Ângelo de Lima. Acrescente-se que o símile do cavalo a galope pode ainda ser lido como forma de sugerir o saisissement criador, a própria experiência poética – e teremos então a inteira percepção da modernidade do poema, que Fernando Pessoa reproduziu no nº 3 de Sudoeste, prestando homenagem, no seu texto “Nós os de Orpheu”, a “quem, não sendo nosso, todavia se tornou nosso”.
Clara Rocha
Bibliografia: Fernando Guimarães, prefácio a Poesias Completas, Lisboa, Assírio e Alvim, 1991, pp. 7-22; Clara Rocha, “A Autobiografia de Ângelo de Lima”, in Máscaras de Narciso, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 155-159; Yara Frateschi Vieira, leitura do soneto “Pára-me de repente o Pensamento...”, in Século de Ouro. Antologia Critica da Poesia Portuguesa do Século XX (org. de Osvaldo Silvestre e Pedro Serra), Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus/Cotovia, 2002, pp. 68-73.