O tom irado ou irascível deste célebre poema em forma de quase manifesto por um individualismo radical ― «Não me macem, por amor de Deus!» ― contrasta estranhamente com o título do poema, que sugeriria, a um leitor desprevenido, tonalidades mais próximas da sobriedade melancólica do que da ferocidade anti-social. A maneira como o engenheiro Álvaro de Campos revisita Lisboa em 1923 é tudo menos um gesto de reconciliação ou de pacificação poética, ainda quando, como assegura outro verso, o céu azul de Lisboa é «o mesmo da minha infância»; nessa estrofe, penúltima do poema, o engenheiro naval imaginariamente formado em Glasgow resume o sentido do título numa apóstrofe afinal coerente com a fúria e a impaciência que a cidade lhe inspira: «Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!». A escolha do inglês como língua do título não é, pois, casual, antes desenha e afirma a condição do estrangeiro que reencontra a mesma cidade onde sempre se sentiu estrangeiro.

Publicado na revista Contemporânea (nº 8, Fevereiro de 1923), “Lisbon Revisited” guarda, assim, as marcas do permanente debate ou embate com o presente histórico que caracteriza toda a poética do Álvaro de Campos inicial. Lido na sua sequência linear, o texto do poema só chega ao confronto explícito com a cidade de Lisboa depois de generalizar enfaticamente a figura do estrangeiro em relação a todas as modalidades de envolvimento ou compromisso social. Daí que se possa ler nele os sinais de uma imagem do poeta (e, afinal, de uma concepção de poesia) que prende o Modernismo à memória, se não mesmo à herança, do Romantismo.

Nem falta sequer, para desdobrar tal linha de interpretação, o tópico do poeta louco: «Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. / Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. / Com todo o direito a sê-lo, ouviram?» O engenheiro naval representa tudo menos uma ideia de poeta solidário ou identificado com o mundo seu contemporâneo: poeta pós-moderno em sentido literal, este Álvaro de Campos que regressa a Lisboa desconfia em particular das narrativas épicas que a modernidade técnico-científica inventou para si mesma: «Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas / Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — / Das ciências, das artes, da civilização moderna!» A impressionante retórica da negação que atravessa todo o texto (doze vezes repetida, a palavra «não», a que será preciso acrescentar «nada» e «nunca») exibe, como poucos outros poemas, a linha de clivagem interna que impede a personagem deste heterónimo de (se) enunciar sob outro modo que não seja o da dramatização. A figura do «desterrado nesse lugar nenhum que são todos os sítios», para lembrar a perífrase que Octavio Paz aplicou a Campos, desenha-se com rara nitidez no modo como o individualismo extremo se afasta, afinal, da matriz romântica pelo esgotamento de qualquer centro que o Eu pudesse constituir enquanto Outro de todos os outros. Nem génio, nem plenitude insondável de um sujeito interiorizado, mais próximo de uma voz beckettiana do que de qualquer crente na redenção surrealista, o Eu deste poema parece reduzido à condição desértica de não afirmar a sua individualidade senão na medida em que está condenado, ao jeito de quem cita as suas próprias palavras na suspeita de que nunca o ouvem, a repetir incessantemente: «[…] Quero ser sozinho, / Já disse que sou só sozinho!»

A penúltima estrofe é, por isso, a mais importante do poema. Retomando o título, cria uma ilusão de identidade que começa logo no primeiro verso («Ó céu azul — o mesmo da minha infância —,») apenas para se desfazer no modo como o último verso faz desabar qualquer possibilidade de identificação subjectiva com as duas apóstrofes referidas à infância (o Tejo e Lisboa): «Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.» O poeta regressado revisita, de facto, um lugar estranho ou um sítio que, pela sua total estranheza, conserva sempre a hostilidade de lugar nenhum.

Mas não é exactamente isto que confere à estrofe a sua importância. É que, para dizer isto, o poema precisa de operar uma elipse (e uma desidentificação) de proporções muito maiores: precisa de fazer esquecer, na personagem de Campos, que é ele o autor da Ode Marítima. Com efeito, o Campos de «Lisbon Revisited (1923)» fala ou escreve como se nunca tivesse situado em Lisboa o acontecimento poético da Ode Marítima, isto é, como se, na ficção da sua experiência de poeta, não tivesse estado em Lisboa e num cais junto ao Tejo em 1915. O arco que religa a data de 1923 à infância de Campos só pode ser construído fingindo, por outras palavras, que a Ode Marítima não existe.

Daí que o problema principal deste poema continue e vá continuar ainda a residir na leitura do seu título, nomeadamente na necessidade de inquirir se é viável interpretar “Lisbon Revisited” ao menos como uma forma indirecta ou oblíqua de dizer “Ode Marítima Rewritten”.

 

Gustavo Rubim

 

BIBLIOGRAFIA

 

Octavio Paz, Fernando Pessoa o Desconhecido de Si Mesmo, Lisboa, 1988.

Silvina Rodrigues Lopes, (comentário a) «Grandes São os Desertos, e Tudo É Deserto.», Século de Ouro: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX, organização de Osvaldo M. Silvestre e Pedro Serra, Braga / Coimbra / Lisboa, 2002.