Fernando Pessoa

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Fernando Pessoa
Cota
BNP/E3, 14-4 – 4
Imagem
BNP/E3, 14-4 – 4
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Autor
António de Seabra

Identificação

Titulo
Lixa – Panfleto periódico de crítica de ideias e de costumes.
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 144 – 4]

 

António de Seabra – Lixa – Panfleto periódico de crítica de ideias e de costumes.

 

Nas épocas de passagem das sociedades, em que uma ordem de conceitos se desfez[1] e outra se não formou ainda, soe haver, na superfície das elaborações, certas contradições e incongruências a que se pode aplicar por metáfora o nome de asperezas ou rugosidades. Querer arrancá-las ou expungi-las seria pouco criterioso, pois que elas trazem, na sua substância as novas formas, ainda ténues, que hão de dar viço e arcabouço às épocas futuras. Tão-pouco caberia tratá-las de modo que se pudesse dizer que as limávamos, pois que de tão ténue consistência elas se revelam, que limá-las – pois que limar implique esforço e pressão,– importaria, com o acréscimo da hipocrisia, destruí-las. Por isso não pode o crítico sagaz dar-se outro escrúpulo a cumprir que não o de as ir abatendo levemente, roçando por elas, com mão cuidadosa, a lixa das levezas opinativas.

Esta, e não outra razão, porque o título destes breves opúsculos não podia ser outro do que Lixa. Parecerá talvez dum desconforto imediato para as suficiências do senso estético; o escrúpulo, porém, do nome justo deve sustar a tempo as irreflexões dos impulsos azedos. Primeiro há de ser cuidada a justeza na aplicação dos nomes; que a cura de quanto possam[2] referir os tímpanos sensíveis dos argutos.

Quando mais não fosse, bastaria dar ao sentido do título outra entoação espiritual, para que ele calhasse ao intuito destes folhetos com uma coincidência geométrica; a crítica, por sua natureza, que não só pelo seu género na gramática, é feminina. Que outro nome pois devia competir a um folheto cujo propósito é crítico do que Lixa, pois que lixa pareça o feminino de Lixo, e Lixo seja esta sociedade?

Quando estas razões não bastassem para que estes prolegómenos de panfleto lograssem para o corpo dele um acolhimento condigno, terão que falar pelo merecido desse acolhimento as laudas, que se seguirão, do folheto propriamente dito.

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Os sensacionistas, de quem não sou, embora os ame.

O falso e o longínquo da crítica que lhes foi feita data, não tanto da estranheza da novidade, como da magra cultura dos críticos. Nós não temos, na própria região literária, um arcabouço de crítico que deveras ou seja; quanto mais nos não faltará, entre os profissionais apressados do jornalismo, quem com razoável escrúpulo e acerto meça[3] as intenções e as competências de escritores que nos surgem desusados?

Uma cultura verdadeira, um estudo acurado da literatura e da arte (tal qual nos reste) dos antigos, assim como uma atenção desvelada aos movimentos, que se têm dado no decurso já longo das literaturas europeias, desde que as nacionalidades modernas se constituíram linguisticamente, não dá azo a grandes pasmos diante de quem quer que seja que se apresenta em novos trajos na recepção hebdomadária da república das letras.

 

[4v]

 

Que nada havia de novo sob o sol, foi frase mesmo para os velhos, pois que date da incerta distância do Eclesiastes bíblico. E quanto mais curioso e atento tem sido o intuito com que se leu, quanto mais vasta e assisada foi a pesquiza com que se buscou o que ler, menor será o pasmo com que se acolha[4] as novidades das letras.

Disse {…}, e disse bem, que não é possível inventar pelo desenho, ou mesmo na imaginação, um novo animal fantástico e surpreendente, cujas partes componentes não sejam tiradas de animais conhecidos. Assim o Dragão da fábula que, sendo, no seu aspecto geral, um absurdo para com os animais que conhecemos, é contudo devedor a cada bicho de esta ou estoutra parte do seu todo.

Não outra é a circunstância que se dá com as novas escolas literárias. Elas não são, nunca, mais do que novos agregados – no seu conjunto, novos – de elementos antigos como a terra e o homem. Toda a originalidade está na maneira como se agrupou e se reuniu. É da competência do crítico saber medir, tanto o que de velho há em cada sistema literário, como o que de novo haja no seu ajuste desses velhos elementos. Desta arte não soçobrará o crítico nos dois cachopos que são a Cila e Caríbdis, da arte de criticar. O crítico deve, como Jano, ter a natureza de ver para dois lados; nem deve esquecer que um grupo de árvores é uma floresta, nem que uma floresta é um grupo de árvores. Verbum sapienti, é certo; e contudo falei com clareza.

Os chamados “sensacionistas” portugueses, nem com serem originais, deixam de dever homenagem a antepassados eternos.

 

Quote Corot & other painters.

 

Assim é que, ainda que vejamos todos que a escola romântica é nova perante a escola clássica, que a precedeu, se quiserdes, com a escolha de tais ou tais versos – o que mais julgardes que caracterizam a nova escola – mostrar em que é novo o romantismo, não lograreis citar um verso ao qual se não possa contrapor um outro, dos clássicos os anteriores, com a mesma feição romântica. É que os elementos são sempre os mesmos, com que o homem constrói os edifícios da sua cultura; construímos com certas pedras e com certos metais, que em todos os tempos têm sido os mesmos, e em toda a parte têm sido conhecidos. Uns, porém, mais construem com tal elemento que com tal-outro, uns de uma maneira combinam, e outros de outra {…}

Para que compreendamos cuidadosamente o chamado sensacionismo, temos de ver de modo ele arranja os eternos elementos de que toda a arte é composta; qual o elemento que faz destacar, para que domine os outros; qual enfim a fórmula de ajuste[5], de que se serve para arquitectar o seu conjunto. Nesta última parte, que não noutra, estará, se notável, a equação específica da sua originalidade[6].

 

 

[1] desfez /(desfaz)\

[2] possam /(podem)\

[3] mida, no original

[4] acolha /(acolhe)\

[5] ajuste /(ajustamento)\

[6] originalidade /(novidade)\

Notas de edição

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Literatura
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Legendas

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Idioma
Português

Dados de conservação

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Biblioteca Nacional de Portugal
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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Tomo II, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, pp. 231-232.
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