Medium
Fernando Pessoa
BNP/E3, 14E – 46-47
BNP/E3, 14E – 46-47
Fernando Pessoa
Identificação
Cesário.

[BNP/E3, 14E – 46-47]

 

Cesário.

 

Cesário Verde foi um dos mais radicais revolucionários que há na literatura. Não lhe chamo um grande revolucionário, porque o termo “grande” não se lhe pode aplicar de modo algum.

Quem lê a obra de Cesário |admira-se| da admiração que a muitos causa. É que lida desprendidamente, e com a expectativa de encontrar grandeza, a obra de Cesário Verde com o que revela de nula imaginação, de nula inteligência, de sentimento circunscrito, e até de falta do sentimento estético, assombra pelo que não tem de grande. O segredo está em que essa obra, pobre como é de quase tudo quanto constitui a grandeza poética possui soberanamente e absorventemente uma qualidade constitutiva da grandeza – a originalidade.

Para medir a grandeza de Cesário

 

[46v]

 

é preciso lê-lo depois de por ampla leitura se estar saturado e integrado no género poético no meio do qual a sua obra surge como um relâmpago.

É preciso repassarmo-nos da atmosfera inspiracional donde sorvia o seu |oxigénio| as plantas |irrealmente| exuberantes que eram as obras poéticas de João de Deus, de Tomás Ribeiro de {…} |de tantos e tantos como esses.|

É depois de ler essas obras que se deve ler Cesário, e é reflectindo então em que foi no meio psíquico onde aquelas eram representativas e |usuais|, que irrompeu a obra de Cesário Verde.

Da violência enorme do contraste salta aos olhos, a par da extraordinária originalidade de Cesário, o conceito psicologicamente explicativo {…} a |chave| dessa individualidade sociologicamente considerada.

Quanto à novidade da obra, o contraste

 

[47r]

 

é flagrante. Em vez da retórica oca e do concomitante sentimentalismo difuso, da carência completa de tudo quanto fosse a visão artística do mundo exterior, da longa estrofe retumbante – o verso sóbrio e severo, o sentimento reprimido, a visão nítida e {…} das coisas, o epíteto revelador, o uso simples e {…} da quadra, ou da quintilha, quase sempre apenas o decassílabo e o alexandrino.

Isto é dito por alto; porque em toda a linha de comparação, em cada ponto da linha, o contraste é inteiro e completo. Uma leitura dos dois géneros dá, melhor do que uma explicação, a exacta noção da diferença.

Quanto ao que isto representa {…}

Cesário Verde foi um revolucionário da literatura. A sua obra foi uma revolução não grande, mas radical. Como todas as revoluções que são radicais sem ser grandes, a obra de Cesário está cheia de defeitos

 

[47v]

 

especialmente de defeitos produzidos pelas próprias qualidades em cuja substituição a outras está o radicalismo.

 

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Classificação
Literatura
Dados Físicos
Dados de produção
Português
Dados de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Palavras chave
Documentação Associada
Cesário Verde, Cânticos do Realismo e Outros Poemas. 32 Cartas, Prefácio de Fialho de Almeida, Estudo crítico de Fernando Pessoa, Edição de Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Relógio D’Água, 2006, pp. 226-227.