[BNP/E3, 14C – 74]
Este trait do carácter de Flaubert permite enveredar por um caminho inesperado. Nada há de mais burguês que este “escusa-de-me-contradizer-que-eu-sei-que-tenho-razão.” Leva-me isto a notar, não sem um sorriso – que os grandes estetas, artistas {…} e outros que guincham, bradam, trovejam contra o burguês, se mostram invariavelmente burgueses no carácter.
Afinal nada há para admirar. Os aristocratas que riem do povo são geralmente[1] muito povo no caracter. O verdadeiro aristocrata – deve o meu amigo ter notado – nunca fala mal do povo, nunca faz troça dele, justamente porque a troça, o desprezo, não são dum verdadeiro aristocrata. Os {…} da nobreza que têm desprezos e sarcasmos {…} e {…} para o povo não raro são os descendentes de cocheiros divinizados, de {…} e de moços de esquina que as circunstâncias fizeram alcoviteiros de um rei, que de resto a aristocracia é sempre do carácter. Um aristocrata não se diferencia do povo sendo grosseiro para ele, porque
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ser grosseiro é ser deles. Nem sendo irónico, malicioso, cáustico para ele; porque ser irónico, malicioso e cáustico é apenas ser grosseiro delicadamente o que continua a ser ser grosseiro, visto que o hábito faz o monge. Dizia-me uma vez um aristocrata do seu país: “diante de mim não admito que se injurie o povo, mesmo como reconhecimento à natureza, porque se não houvesse povo, não havia aristocracia; portanto ou eu acho valor em ser aristocrata, ou não acho; se não acho, é pouca estupidez gabar-se disso injuriando os que o não são; se acho, devo notar que só o sou por haver povo e aristocracia. É como se a criança insultasse a ama que a leva ao colo, pelo surpreender de ser levada ao colo. E se a ama a pusesse no chão? – Estas sábias considerações fazia-as um nobre inglês. Também em nenhum outro país seria qualquer nobre de nobreza capaz de as fazer. Não vale a pena insistir.
[1] geralmente /sempre\