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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 18 – 100–113
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[Sobre o drama]
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Sobre o drama]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 18 – 100–113]

 

I.

 

1. – O drama, como todo objectivo, compõe-se organicamente de três partes – das pessoas ou caracteres; da entreacção dessas pessoas; e da acção ou fábula per meio e através da qual essa entreacção se realiza, essas pessoas se manifestam. Produto subjectivo assim composto, o drama provém de três qualidades – do instinto psicológico, que cria e informa os caracteres, e depois os vai descobrindo uns per meio dos outros; do instinto dramático, que inventa ou renova a fábula, e dispõe o seu seguimento; do instinto artístico, que ordena a operação dos outros dois na construção harmónica do todo, como na execução formal de cada parte.

2. – Ao dramaturgo, para que de natureza o seja, são necessários estes três instintos; e, para que mereça |o nome|[1], um ou outro tem que haver nele em grau notável. Conviria, por certo, que nele[2] existissem todos, não só em grau notável, senão também no mesmo grau; para que a obra fosse, ao mesmo tempo, inspirada e harmónica. Mas a imperfeição da natureza humana não permitiu ainda que tal engenho nascesse; seria porventura um monstro de perfeição, o sine labe monstrum do poeta. Houve, sim, um Shakespeare, psicólogo sem igual, mas artista irregular e dramaturgo imperfeito; houve um Ibsen, grande dramaturgo, porém artista e psicólogo insuficiente. E outros houve que não esqueço, e omito. Só os gregos, num nível que na psicologia não é o de Shakespeare, nem na arte da acção podia ser o de Ibsen, lograram, pelo instinto de harmonia que os distinguiu como povo, a posse daqueles três instintos – predominando, contudo, o artístico – em quase igual plenitude.

3. – Àquelas três qualidades chamei instintos, como podia, com diferente propriedade, ter chamado intuições. Entendi, em primeiro lugar, empregar um termo por onde logo se visse que são, não faculdades cultivadas da inteligência – que compreende esclarece, corrige, mas não cria –, mas disposições nativas da imaginação, enraizadas com ela na substância emotiva[3] do temperamento. Mas fiz uso do termo, também, por uma outra e melhor razão. Com efeito, quando uma qualidade qualquer existe em nós em grau notável, e de modo, portanto, que determina o carácter e as inclinações – como esta ou aquela, das três qualidades citadas, em que é digno de que se lhe chame dramaturgo –, tal qualidade, por assim ser, revela que é uma fixação da hereditariedade, embora por variação; e que por isso por inteiro[4] se assemelha – mais – se identifica – ao[5] instinto.

 

II.

4. – Como são, pois, instintos, aquelas três qualidades participam da natureza (especial, distintiva) de todo (o) instinto, em que são, em ser como em grau, ingénitas: ou se nasce com elas, ou nunca se têm; e no âmbito de cada uma se não ultrapassa, como também se não falta, ao quantum dela, com que se nasceu. Parece, ao primeiro olhar, haver neste critério demasiada estreiteza, e que nele nimiamente se descurou a experiência. Esta dúvida acaba, porém, com o conhecimento exacto do que, no caso de um instinto, se pode entender por experiência. O termo “experiência”, como ordinariamente se emprega, aplica-se[6] à experiência dos sentidos e da inteligência; mas a experiência do instinto não se assemelha a esta.

 

[101r]

 

A inteligência é, de sua índole, receptiva e passiva, como o são os sentidos, de que ela é como o prolongamento; o instinto é, de sua natureza, activo e criador, como a vontade, de que ele é como a cristalização. A experiência, portanto, vai ter com a inteligência, e esta torna-se o que aquela foi[7]; o instinto vai ter com a experiência, e esta torna-se o que aquele já é. E, se pensarmos que se pode negar[8] esta doutrina, atentando no caso de uma inteligência de grande vulto e novidade, repare-se que a esta se aplica abusivamente o termo restrito de inteligência, cujo uso se faz para uma qualidade, e não para um temperamento manifestado[9] per essa qualidade. Aqui trata-se, já, do génio, e este, como provém[10] da hereditariedade e da variação, é em tudo idêntico a um instinto. Nasce-se o poeta que se há de ser; mas não se nasce o metrificador que se há de ser, porque se não nasce metrificador. Como, porém, é pela metrificação que o instinto poético opera, o poeta, que se nasce, há de vir a ser o metrificador[11] que se não nasce, porque há de der levado a aprender a metrificar pela operação inevitável do seu instinto.

|5. – Mas não é só a forma, é também a matéria, da experiência, que varia[12] da inteligência para o instinto. Por experiência, para o instinto, não se entende a experiência pessoal e casual, com que a memória se enche e o raciocínio se instrui: essa é da inteligência e dos sentidos. Entende-se, sim, a experiência que o instinto procura por índole, não para aumentar, porque não pode aumentar (como não diminui), mas apenas para ser o que é, para se alimentar ou satisfazer. Busca a inteligência, nas coisas e per elas, o com que aumente e se transforme[13]. Não busca o instinto, na vida e pela vida, senão o com que se mantenha e se defina.| São ideias definidas, sensações particulares, factos concretos, o que enche a memória e, como experiência, é próprio da inteligência; o instinto, per contra, alimenta-se, não de ideias, de factos, de sensações, senão[14] da atmosfera que resulta deles, e em que eles, e ele, vivem.

6. – Como diferem na forma e na[15] matéria da sua experiência, diferem também a inteligência e o instinto na[16] relação entre essa matéria e essa forma. Entre o valor virtual e o real[17] da inteligência, ou dos sentidos, não só pode haver, como há sempre, diferença. Sabemos, vimos, sentimos[18] sempre menos do que poderíamos[19] ter aprendido, visto, sentido[20]. Não é assim na vida do instinto. Como a essência deste consiste na actividade[21], e a sua experiência depende da sua actividade, quanto maior ele for, mais activo será, e quanto mais activo, mais experiente. No instinto, portanto, não existe, quanto à experiência, distinção alguma entre o virtual e o real. Por isso, ao passo[22] que não podemos medir a inteligência de um homem per o que ele sabe ou viu, não só podemos, como temos que, medir o valor de um seu instinto (por igual por o que conseguiu ou fez) por[23] o que aquele instinto fruiu ou experimentou.

 

[102r]

 

Quando, guiados por[24] estes princípios (e por que outros, que não estes, nos guiaríamos?), nos propomos determinar qual o valor de um dramaturgo, ou de uma obra dramática, temos que empreender uma dupla investigação. Investigaremos, primeiro, se o dramaturgo o é de instinto ou de inteligência, se a obra é produto de um impulso criativo natural, ou uma mera ocupação da inteligência. Só depois de {…}

 

Quando, guiados por[25] estes princípios (e por que outros, que não estes, nos guiaríamos?), nos propomos determinar, como críticos, qual o valor de um dramaturgo, ou de uma obra dramática, temos que empreender uma dupla investigação. Investigaremos, primeiro, se deveras se trata de um dramaturgo, se apenas de um escritor dramático; ou, per outras palavras, se o dramaturgo o é de instinto ou de inteligência; se a obra, produto de um impulso natural do temperamento, pode, com o ser, representar[26] um valor artístico; ou se, mera ocupação da inteligência, não pode significar[27], mais do que uma curiosidade, bem feita embora, da literatura.

 

{…} uma habilidade, bem desempenhada embora, da literatura {…}

 

 

 

Feita, portanto, aquela[28] primeira determinação, e quando dela resulte que a obra, com efeito, provém do instinto, e não da só inteligência, podemos deveras aplicar os princípios, que estabelecemos. Sabemos já que, quando empregamos a nossa atenção nos instintos especiais, de cuja operação procede a criação dramática, temos que atender unicamente ao que seja a matéria da sua experiência; a forma, e a relação entre a forma[29] e a matéria, são as mesmas para todos os instintos, e para esses portanto de igual modo que para os outros. Podemos, pois, só pelo conteúdo do que é instinto, determinar o valor dele, e, por conseguinte, o de seu possuidor. Possuidores destes esclarecimentos, poderemos obviar a que o defeito natural da crítica – o ser[30] espontaneamente subjectiva – nos desvie de um critério, quanto possível, objectivo e científico. O que ainda nos falta[31] é saber, primeiro, como se determina que uma obra dramática provém do instinto, e não da inteligência; depois, em que consiste, concretamente, o conteúdo dos três instintos, de que se compõe o natural do dramaturgo.

 

[103r]

 

A inteligência é, de sua índole, receptiva e passiva, como o são os sentidos, de que ela é como o prolongamento; o instinto é, de sua natureza, activo e criador, como o é a vontade, de que ele é como a cristalização. A experiência, portanto, vai ter com a inteligência, e esta torna-se o que aquela foi; o instinto vai ter com a experiência, e esta torna-se o que aquele já é. Colhe a inteligência, nas coisas e per elas, o que com que aumente e se transforme; não colhe o instinto, na vida e pela vida, senão o com que se mantenha e se defina. E, se pensarmos que se pode negar esta doutrina com o exemplo de uma inteligência de grande vulto ou novidade, repare-se que a esta se aplica abusivamente o termo restrito de inteligência, cujo uso se faz para uma qualidade, não para um temperamento manifestado per essa qualidade. Nasce-se o poeta que se há de ser; mas não se nasce o metrificador que se há de ser, porque não se nasce metrificador. Como, porém, é pela metrificação que o instinto poético opera, o poeta, que se nasce, há de vir a ser o metrificador, que não se nasce, porque há de ser levado a aprender metrificação pela operação inevitável do seu instinto.

Mas não é só a forma, é também a matéria, da experiência, que varia da inteligência para o instinto. É a experiência pessoal e casual, são ideias definidas, sensações particulares, factos concretos, o com que a memória se enche e o raciocínio se instrui; o que constitui, portanto, a experiência própria da inteligência. O instinto, per contra, alimenta-se, não de ideias, de factos, de sensações, porém da atmosfera que resulta deles, e em que eles, e ele, vivem. A inteligência, por informada já que seja, como por natureza, é vazia e abstracta, alimenta-se com o seu contrário, o definido e o concreto, buscando-o para encher-se ou para alargar-se. O instinto, como busca na experiência, não o com que aumente e se transforme, mas o com que se mantenha e se defina, busca, não o seu contrário, porém o seu análogo, o abstracto ou indefinido. Os instintos intelectuais (que particularmente vamos estudando), como se relacionam com ideias, buscarão, para experiência ideias; como, porém, são instintos, buscá-las-ão indefinidas. Mas como as ideias indefinidas – que o não sejam só por imperfeitas – são as ideias gerais, temos que, descrevendo nós a matéria da experiência do instinto como uma atmosfera, e não uma coisa, servimo-nos de um termo que, posto à prova neste caso particular, tem cabimento; pois que são as ideias gerais e as generalizações senão a atmosfera em que se movem as ideias particulares e os dados imediatos da percepção?

Como diferem quanto à forma e à matéria da sua experiência, diferem também a inteligência e o instinto quanto à relação entre elas. Entre o valor virtual e o valor real da inteligência, ou dos sentidos, não só pode haver, como há sempre, diferença. Sabemos, vimos, sentimos sempre menos do que podíamos ter aprendido, visto, sentido. Não é assim na vida do instinto. Como a essência deste consiste na actividade, e a sua experiência depende da sua actividade, ele, quanto maior for, mais activo será, e quanto mais activo, mais experiente. No instinto, portanto, não existe, quanto à experiência, distinção prática entre o virtual e o real. Por isso, enquanto que não podemos medir a inteligência de um homem per o que ele sabe ou aprendeu, não só podemos, como devemos, medir o valor de um seu instinto per o que aquele instinto fruiu ou experimentou.

 

[104r]

 

III.

 

Quando, guiados por estes princípios (e por que outros, que não estes, nos guiaríamos?) nos propomos determinar, como críticos, qual o valor de um dramaturgo, ou de uma obra dramática, temos que empreender uma dupla investigação. Investigaremos, primeiro, se deveras se trata de um dramaturgo, se apenas de um escritor dramático; ou, per outras palavras, se o dramaturgo o é de instinto ou de inteligência; se a obra, produto de um impulso natural do temperamento, pode, pois que o é, significar um valor artístico, ou se, mera composição da inteligência, de modo nenhum pode ser mais de que uma habilidade, bem desempenhada embora, da literatura, bem desempenhada. Feita que seja esta primeira determinação, e quando dela resulte que a obra, com efeito, provém do instinto e não só da inteligência, podemos então aplicar aqueles princípios, cujo estabelecimento nos ocupou. Sabemos já que, quando empregamos a nossa atenção nos instintos especiais, de cuja operação procede a criação dramática, temos que atender, unicamente ao que constitui a matéria da sua experiência; a forma, e a relação entre a forma e matéria, como são as mesmas para todos os instintos, foram já, quando estudadas na generalidade, estudadas implicitamente para este caso especial. Sabemos também que, pelo conteúdo do que é instinto, podemos determinar o valor dele, e, portanto, o de seu possuidor, no que por ele se manifeste. Senhores, pois, destes esclarecimentos, poderemos, quando os apliquemos à crítica dramática, obviar a que o defeito natural de toda a crítica – o de ser espontaneamente subjectiva – nos desvie de um critério, quanto possível, objectivo e científico. O que ainda nos falta é saber, primeiro, como se determina que uma obra dramática provém do instinto e não da inteligência; depois, em que consiste concretamente o conteúdo dos três instintos, de que se compõe o natural do dramaturgo.

 

IV.

 

A aplicação voluntária, e a instintiva, da inteligência – como se trata de instintos intelectuais, não há aqui contradição, nem própria, nem com o que já se estabeleceu – distinguem-se quanto ao modo como, por assim dizer, se apoderam do assunto. O instinto parte do centro do assunto para a sua periferia; segue a inteligência o caminho inverso. O instinto sabe, com certeza, o essencial, podendo errar no acessório; a inteligência acerta, se o é deveras, com o acessório, quase nunca remontando à essência.

Nas três divisões objectivas do drama, o essencial, quanto às pessoas, é que sejam naturais e humanas, e como elas se manifestam pelo diálogo, a virtude prima do dramaturgo, neste ponto, é que escreva um diálogo natural; quanto à entreacção das pessoas, que provenha de seus caracteres, e não da fábula, que então lhes parecerá externa; quanto à acção, que pareça nascer, não de uma determinação do autor, senão dos caracteres que na sua entreacção, que pareça, na verdade, existir, não como fábula, senão como vida.

Estes requisitos do essencial do drama parecem, aos que incautos os lêem, ser de uma fácil aplicação; julgareis que qualquer inteligência prudentemente aplicada sem grande esforço os pode realizar. A sua execução é, porém, dificílima. Se o leitor destas palavras hauriu bem o sentido que vai nelas; se quiser, {…} 

 

[105r]

 

III.

 

É o drama um género da literatura; e esta, por sua vez, um género da arte. Per outras palavras, o drama é primeiro arte, depois literatura, finalmente drama. A ele devem convir portanto os característicos que distinguem a obra de arte[32], os que distinguem toda a obra literária, os que distinguem toda a obra dramática das outras obras literárias[33].

O drama representativo, porém, como serve de presentar a acção humana real, distingue-se desde logo per uma peculiaridade[34]: que nele as qualidades literárias e as dramáticas se fundem, não havendo qualidades literárias que não sejam exclusivamente[35] dramáticas. Sim, se há de presentar acção humanas de modo que nos pareçam reais, não há de o diálogo ser[36] mais literário do que a conversa vulgar dos homens; nem a acção, mesmo quando seja de um caso notável, ou especial, de tal ordem que se possa dizer que é[37] {…}

No drama representativo, porém, tudo que se possa dizer literário, é um defeito.

Vemos, pois, que no drama representativo, como não há requisitos[38] literários, que não sejam só os dramáticos, escusamos de designá-lo como correlativamente obra de arte, obra literária e obra dramática. Não só com propriedade, senão com exactidão, diremos que ele é só primeiro obra de arte, depois obra dramática.

Convir-lhe-ão portanto os característicos qualitativos do género, e da espécie drama.

 

IV.

 

A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte. Como só obra – isto é, simples produto objectivo do esforço humano – ela provém de uma das duas qualidades do espírito, cujo fim é efeituar os nossos intentos; são elas a vontade consciente, e o instinto.

 

V

 

Ela, porém, não só é obra, senão obra de arte. Difere a obra de arte de qualquer simples produto do esforço humano, no que um exemplo simples claramente mostra. Uma carta particular é, em certo modo, literatura, pois que se forma de palavras escritas; uma frase dita, por vulgar que seja, como é linguagem falada, é em certo modo oratória; e assim Monsieur Jourdain descobriu que toda a vida fizera prosa. Nós porém não consideramos literatura uma carta vulgar, a não ser que por acaso apareça com valor determinado; tão-pouco temos por do domínio oratório uma frase dos acasos da rua; nem a Monsieur Jourdain, embora a sua prosa, chamamos um prosador.

A elegância da dicção, os primores do vernáculo, os ornatos da poesia, podem convir ao drama transferido, poético ou simbólica, porque nessa espécie de drama, como o fim principal é literatura, se não pretende presentar a acção humana como exactamente possa dar-se.[39]

 

Todavia a carta vulgar, como tem sentido, ritmo, dicção, há de ter como literatura, um valor qualquer, por pequeno que seja. E também a frase vulgar como tem um ritmo, um sentido, e foi enunciada de certa maneira, algum valor teve como oratória, por pouco que fosse. E M. Jourdain, embora não fosse um prosador, como fazia prosa, algum valor a prosa havia de ter.

 

Temos, pois, que a obra de arte, para sê-lo, envolve que tenha, não um valor qualquer, mas um valor notável. 

 

[106r]

 

Um drama é: obra, obra de arte, obra literária, obra dramática, drama representativo.

 

De outro modo: obra de arte, obra literária, drama.

Obra de arte é obra e obra de arte.

Obra literária é obra intelectual e obra literária.

Drama representativo é drama e drama representativo.

 

A obra provém da vontade ou do instinto; a obra de arte provém do instinto.

 

A obra intelectual provém do emprego da inteligência; a obra de literatura do emprego da inteligência literária. O drama, porém, quando representativo dispensa este elemento literário; é portanto obra intelectual. A obra de arte intelectual deriva do instinto intelectual.

A obra dramática é de acção, e drama. Como obra de acção tem pessoas, entreacção das pessoas e enredo. Como drama também.

 

[106v]

 

{…} arte é, ao mesmo tempo {…}

 

[107r]

 

Completa assim, como cumprir que a fizéssemos, a exposição das bases, ou princípios, que regem o engenho crítico na análise de um drama, vamos proceder à aplicação desses princípios ao drama especial, a que estas considerações servem, porventura sem préstimo, de comentário.

 

-------

 

Consideremos, primeiro, se o autor deste drama é um dramaturgo de instinto, ou um escritor que compôs um drama. Sabemos já como essa determinação é feita.

 

[108r]

 

A aplicação voluntária, e a instintiva, da inteligência – trata-se aqui de instintos intelectuais, e é por isso forçoso assim dizer –, diferem quanto ao modo como, por assim dizer, se apoderam[40] do assunto. O instinto parte do centro do assunto para a periferia; a inteligência segue o caminho inverso. O instinto sabe, com certeza, o essencial, podendo errar o acessório; a inteligência, se deveras o é, acerta no acessório, mas quase nunca atinge[41] o essencial.

Ora, nas três divisões objectivas do drama, o essencial, quanto às pessoas, é que sejam naturais e humanas, e, como elas se manifestam pelo diálogo, a virtude prima do dramaturgo, neste ponto, é que tenha um diálogo natural; quanto à entreacção das pessoas, que provenha de seus caracteres, e não de uma acção que lhe é imposta[42]; quanto à fábula, que pareça nascer, não de uma determinação do autor, mas dos caracteres na sua entreacção, que pareça, na verdade, existir, não como fábula, senão como vida.

Estes requisitos do essencial do drama parecem, aos que incautos os lêem, ser de uma fácil aplicação; sentimos que qualquer inteligência prudente sem grande esforço os pode realizar. Na verdade são dificílimos. Se o leitor destas palavras hauriu bem o sentido que está nelas, se quiser, sabedor desse sentido, ler,(melhor que ouvir), tal e tal-outro drama célebre, reparará quão poucas vezes um diálogo é como na vida, quão poucas vezes as pessoas entreoperam como na vida, quão poucos os enredos dramáticos em que não se sente o enredo, existindo. Reparará, em-resumo, quão poucos são os dramaturgos entre os muitos que escrevem dramas.

O que a nós porém importa é ter, com isto, estabelecido o critério objectivo, por onde distinguir, no drama, a operação do instinto da aplicação da inteligência, e a obra do dramaturgo da composição do escritor.

 

Quanto, agora, ao conteúdo especial, pelo qual se examine a experiência de um instinto dramático, de que modo o determinaremos?

 

[109r]

 

Que falta à carta vulgar, ou à frase de conversa, ou à prosa de M. Jourdain, para que as consideremos arte? Ambas de duas coisas, ou uma delas: ou a intenção de[43] serem arte, ou um valor em certo modo notável. Como, porém, uma carta vulgar pode, sem que o autor queira, embora não seja provável, ter um real valor literário; e uma outra, feita com a intenção de ser literatura, não o ter; e como, nestes casos, diremos da primeira que é literatura, e, da segunda que o não é, segue que o que denota que uma obra é obra de arte é representar ela um valor em conteúdo notável.

______________________________________________________________________

Ora vimos que uma obra há de provir, ou da vontade consciente, ou do instinto. Se a vontade pudesse, de per si, determinar o valor de uma obra de arte, o maior artista seria o homem de mais forte vontade, que quisesse aplicá-la à arte, o que é infundado. Como a vontade consciente opera per meio da inteligência, pode ser que o valor da obra de arte proceda da força da inteligência, que se empregou. Se assim fosse, porém, o homem que reunisse uma forte vontade a uma forte inteligência, seria um grande artista. O que basta é alma pois que a mais vasta inteligência não se orienta senão para aquilo que propenda; nem lhe serve de nada uma erudição larga {…}

 

[110r]

 

IV

______________________________

A distinção fundamental entre instinto e vontade consciente estabelecer-se-á com exactidão se nos orientarmos per um exemplo, em que ambos figurem[44]. Decido atravessar uma rua, para falar a alguém, que está do[45] outro lado; atravesso, andando essa rua. Do primeiro acto (atravessar a rua) dizemos que é da vontade consciente; do segundo (andar) que é do instinto. O primeiro divide-se claramente em 2 partes de tempos: o fim, que é falar a alguém que está do outro lado da rua; o meio, que é atravessar a rua.

Em andar que é tanto um acto, quanto o é só atravessar a rua também há um fim, que é chegar a um ponto, e um meio, que é o sistema ósseo e muscular, pelos quais com efeito ando. Pode haver consciência do fim, do meio não há nunca.

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O acto de vontade consciente difere, portanto, do de vontade inconsciente, ou de instinto, em que o primeiro é consciente quanto aos fins e também aos meios, sendo que o segundo, podendo ter consciência dos fins, nunca a tem os meios, de que se serve.

Quer da razão, porque atravesso a rua, quer do meio de que me servi, que é atravessando-a, tenho consciência. De andar posso ter, ou não, consciência; do emprego do sistema muscular e ósseo para andar não a tenho. Assim, quanto maior o conhecimento[46], da rua e dos passos de atravessar a rua, mais prontamente a atravessarei. Mas o grau do meu conhecimento geral da anatomia e psicologia, ou especial do conhecimento do consciente, não alterará em nada o modo como ando.

O inconsciente distingue-se portanto da vontade, não só em que esta é consciente quanto aos meios que emprega, e aquele misto; como[47] também em que neste o meio e os fins existem separados, naquele formando uma só substância.

Posto isto, temos que ver se, das duas formas, a que é da arte pode fruir semelhantemente da vontade consciente, ou do instinto, ou se forçosamente tem de possuir a só um deles.

 

[110r]

 

I have sufficient leisure to be able to undertake a fair volume of work without sacrifice of care and style.[48]

 

[111r]

 

Se, portanto, a obra de arte não depende da intenção; {…}

 

Se, portanto, a obra de arte não depende da intenção[49], não depende da vontade consciente. Força é portanto que dependa, ou do instinto, ou se a vontade consciente pode efeituá-la, não dessa vontade, porém do meio de que se serve. O meio, de que se serve a vontade é a inteligência. A obra de arte é[50] pois produto, ou do instinto, movido por si-mesmo, ou da inteligência, movida de fora pela vontade consciente.

Como a inteligência toma consciência dos meios, per que opera, ou, per outras palavras, dá consciência à vontade dos meios para aquela operar, |e o instinto, por definição, não tem consciência dos meios,| segue que a obra da inteligência será perfeita na proporção em que ela tenha conhecimento dos meios, que deva empregar. Por onde se conclui que, aceite que a inteligência pode realizar, movida só pela vontade, uma obra de arte, o homem mais instruído nos princípios e regras da arte, que pretende executar, será o maior artista nessa arte; que, portanto, o maior raciocinador será o que mais lógica saiba, o maior artista do verso o que mais conheça metrificação, e assim por diante.

É, porém, elementar na experiência humana que isto assim não é, e que na aplicação, e seus modos, reside o valor da obra, nos princípios mesmos que podemos |*excluir|, porém não |criar|. Por isso a inteligência, podendo auxiliar na factura da obra de arte, não pode, como tal, produzi-la.

Por onde, se a obra de arte nem pode provir da vontade[51], nem da inteligência – as duas qualidades que cooperam no acto da vontade consciente -, força é, per exclusão, que seja um produto do instinto.

Mais segue, porém, daqui que só por ser do instinto a obra de arte tenha valor. O que segue é que só pode ter valor quando venha do instinto. O ser do instinto é o criador de valor, só o valor cria.

Como a obra dramática, porém, é uma espécie da obra de arte; o que se disser do género, forçosamente se tem de aplicar à espécie; por onde na obra dramática dois são os instintos que devem colaborar – o instinto artístico, de que ela provém como obra de arte genérica[52]; e o instinto dramático (ou instintos dramáticos, se houver mais que um) de que ela provém como espécie.

 

VI.

 

A obra de arte, porém, é obra, se não da inteligência, por certo de inteligência; isto é, é um produto intelectual. Como o é, acontece que, embora seja um instinto que a produza, esse instinto deve ser um instinto, a que com propriedade se pode chamar intelectual, pois serve fins intelectuais e não simplesmente vitais – como, por exemplo, o andar. Acontece também que, como é um produto intelectual a obra de arte, embora um instinto a produza como valor, pode a inteligência produzi-la também, ainda que não como valor. E como temos que determinar princípios objectivos, per meio dos quais se meça[53] o valor de uma obra de arte, e depois de um drama, primeiro temos que ver como se distingue a obra de arte produto do instinto da obra de arte produto da inteligência, pois que a primeira tem a condição do valor, a segunda não. Depois teremos que determinar, adentro da obra de instinto, qual o sinal per onde se meça[54] o grau do valor que tem.

 

[111v]

 

Instintos são hábitos herdados

 

Como se criaram instintos orgânicos, porque se não houve se criar instintos intelectuais?

 

Instintos e hábitos operam do seu modo, e quando dizemos instintos, entendo que são instintos intelectuais. Especialmente se chama instinto ao intelecto[55] que se herda.

 

Como porém a inteligência tem por fim natural é transformar os dados da sensação, ou matéria criada na inteligência, ou como ela por matéria, terá por fim transformar, mas sendo a matéria da inteligência, que é suposta e que, por envolver arte, ela transforma na realização.

 

[112r]

 

A ideia geral central define-se pelo próprio fim do instinto – o de comer edível.

 

Distingue-se pois um produto do instinto, de um da inteligência em que no primeiro o essencial está com certeza dado, no segundo nunca, sendo dado apenas o acessório.

Em que se vê porém o valor de um produto do instinto?

Ao fim de cada instinto vimos que convém uma ideia central ou essencial; mas vimos também que convêm várias ideias acessórias.

Quais são as ideias que determinam o valor do produto, ou do objecto? Um objecto é ou não susceptível de comer-se; mas, se há de dar-se-lhe valor como tal, força é que seja ou mais grato ao paladar que outro, ou mais útil que outro, ou {…} Assim o valor de um instinto mede-se pelo número de ideias gerais acessórias[56] que juntou à ideia central.

Como, porém, a inteligência pode usar as ideias acessórias, como poderemos distinguir a ideia acessória usada pelo instinto, daquela, que é usada pela inteligência? Não basta ver que o instinto conseguiu a ideia central porque, como o instinto pode colaborar com a inteligência, pode ele ter conseguido aquela, mas esta ter dado as outras, e não serão do instinto. Para que sejam do instinto, força é que estejam dadas também como essenciais, isto é integradas na substância do essencial.

O artista de comer será aquele para quem na própria edibilidade se incluam palatabilidade e a utilidade.

 

Só que o valor de um produto de um instinto se mede pelo número das ideias gerais acessórias, das possivelmente convenientes ao fim deste, que ele incluiu na substância da ideia geral central, que manifesta no produto.

 

Temos, pois, 1º, que um produto é do instinto quando nele se manifesta a ideia central {…}

 

_______

Os instintos do dramaturgo são, por isso, instintos intelectuais. Como tais as ideias gerais de que vem, são especialmente de natureza intelectual, e se cada parte, que o seja do drama, a ideia central seria relativamente ao fim do artista a que necessariamente defina essa parte, os acessórios serão os que assimilem nessa definição. ||Ante

 

[112v]

 

Universalidade.

 

____________________________________________________

 

Ideia geral central.

(1) possibilidade das pessoas

(2) que a entreacão decorra dos seus caracteres

 

____________________________________________________

instinto psicológico – máxima verdade

instinto dramático – {…}

instinto representativo – máxima generalidade

 

[113r]

 

VII.

 

A inteligência e o instinto distinguem-se, primariamente, quanto à natureza dos seus fins. Como tem por fim compreender, a tudo é susceptível de se compreender, ou objecto de compreensão, a inteligência não tende para um objecto particular, nem para um grupo ou espécie particular de objectos. Como tem por fim operar, o instinto tem forçosamente um fim especial, pois que só a determinação, que pertence à vontade consciente, não como vontade porém como consciente, pode ter um fim geral, que é o de determinar. O instinto de comer, por exemplo, serve de guiar-nos em comer; não serve de guiar-nos em outro acto qualquer.

A inteligência pode seguir o fim de qualquer instinto, sobretudo de um instinto intelectual; assim posso comer sem ter vontade, por um acto de inteligência, determinado, por exemplo, pela vontade e para o fim de não me desalimentar.

Como tem por fim uma só categoria de actos, o instinto busca só os meios que lhe sirvam para esse fim, e os objectos também. Como o acto de compreender envolve tudo, a inteligência busca como tal, tudo para compreender, pois que tudo serve esse fim.

Assim, a inteligência, tendo tudo por essencial, relativamente a compreender, {…}

 

O instinto, como tem um fim determinado, e também como nele o fim e os meios formam uma só substância, {…}

 

A inteligência, porém, que pode empregar-se em decidir quais as qualidades que distinguem os produtos que servem para se comer, pode também empregar-se em decidir quais as qualidades dos tecidos, que servem para se vestir.

 

Mas, no caso de não haver instinto de comer, há doença; a inteligência só pode substituir o instinto, quando este seja mórbido. Mas como, quando este seja mórbido, não funcionará bem, diremos que nada isso tem para o nosso caso.

 

Como o instinto tem um fim determinado, como a esse fim determinado convêm só determinados objectos, como esses objectos se determinam por uma qualidade comum, que é servirem a esse fim, como uma qualidade comum se define per meio de um ideia geral, segue que o instinto – inconscientemente embora – se guia por uma ideia geral. Assim o instinto de comer serve um fim determinado, que é comer, só lhe convêm determinados objectos, que são susceptíveis de ser comidos, e estes definem-se per uma ideia geral, a de edibilidade.

Quando, como no caso de comer forçosamente, quando, em uma doença, o instinto de comer se torne mórbido, a vontade, ou a inteligência, nos façam comer, fazem-no por utilidade nossa e escolhem o objecto que devemos comer pela sua utilidade, e não pela simples edibilidade.

Nisto, pois, se diferençam o acto de instinto e o de inteligência. O instinto vai direito à ideia geral essencial ao assunto, podendo guiar-se ou não, e conscientemente ou não, per ideias acessórias. A inteligência, quando intervenha, ou intervém porque o acessório seja mais importante, de momento, que o essencial, ou, em qualquer caso, prepõe sempre o acessório ao essencial {…} 

 

 

[1] |o nome| /a fama\

[2] nele /em algum\

[3] emotiva /(activa)\

[4] inteiro /(em tudo)\

[5] ao /(a um)\

[6] aplica-se /(refere-se)\

[7] foi /(tem sido)\

[8] negar /(contestar)\

[9] manifestado /(sobretudo)\

[10] provém /(procede)\

[11] metrificador/(,)\

[12] varia /(difere)\

[13] transforme /(desenvolva)\

[14] senão /(porém)\

[15] na /quanto à\ forma e na /à\

[16] na /quanto à\

[17] o /(valor)\ real

[18] sentimos /(ouvimos)\

[19] poderíamos /(podíamos)\

[20] sentido /(ouvido)\

[21] consiste na actividade /(reside na actividade)\

[22] ao passo /sendo\

[23] /(como)\ por

[24] por /(per)\

[25] por /(per)\

[26] /porque o é,\ representar

[27] não pode significar /de modo nenhum ser\,

[28] portanto /que seja\, aquela /esta\

[29] forma /(esta)\

[30] o ser /de que é\

[31] nos resta é /ainda nos falta\

[32] que distinguem a obra de arte /da arte que lhe convém\

[33] das outras obras literárias /de alguma das outras\

[34] pe/parti\culia/la\ridade

[35] exclusivamente /só as\

[36] ser /|*mostrar|\

[37] de tal ordem que se possa dizer que é /ter mais significações entendidas do que\

[38] qualidades /(requisitos)\

[39] |*tendo o dramaturgo de vêr a sensibilidade das pessoas e|, apontamento manuscrito acrescentado na margem esquerda do texto.

[40] apoderam/ssam\

[41] atinge /(alcança)\

[42] imposta /externa\

[43] intenção /(que vão ter)\ de

[44] figurem /operem\

[45] do /no\

[46] Assim, quanto maior o conhecimento /quanto mais a consciência que eu tenho, de que estou atravessando a rua\

[47] como /sendo\

[48] Tenho lazer suficiente para produzir um bom volume de trabalho sem sacrificar o cuidado e o estilo.

[49] da/o\ intenção /intento\

[50] é /há de ser\

[51] vontade /determinação\

[52] obra de arte genérica /género\

[53] mida, no original.

[54] mida, no original.

[55] intelecto /(inteligência)\

[56] acessórios, no original.

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2378

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