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Fernando Pessoa
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BNP-E3, 18 – 71–81
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[Sobre o drama]
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Autor
Fernando Pessoa

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Titulo
[Sobre o drama]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[BNP/E3, 18 – 71–81]

 

[72r]

 

 

I.

 

O drama, como todo objectivo, compõe-se organicamente de três partes – das pessoas ou caracteres; da entreacção dessas pessoas; e da acção ou fábula, per meio e através da qual essa entreacção se realiza, essas pessoas se manifestam. Produto subjectivo assim composto, o drama provém de três qualidades – do instinto psicológico, que cria e informa os caracteres, e depois os vai descobrindo uns per meio dos outros; do instinto dramático, que inventa ou renova a fábula, e dispõe o seu seguimento; do instinto artístico, que ordena a operação dos outros dois na construção harmónica do todo, como na execução formal de cada parte.

Ao dramaturgo, para que de natureza o seja, são necessários estes três instintos; e, se o nome há de valer como elogio, um ou outro tem que haver nele em grau notável. Conviria, por certo, que nele existissem todos, não só em grau notável, senão também no mesmo grau; para que a obra fosse, ao mesmo tempo, inspirada e harmónica. Mas a imperfeição da natureza não permitiu ainda que um engenho tal nascesse; seria porventura um monstro de perfeição, o monstrum vitio carens do poeta. Houve, sim, um Shakespeare, psicólogo sem igual, porém artista irregular e dramatista imperfeito; houve um Molière, grande dramatista, porém artista e psicólogo insuficiente; e outros houve que não esqueço, e omito.

 

[71r]

 

Só dos gregos, pelo instinto de harmonia que os distinguiu como povo, houve quem, num nível que na psicologia não é o de Shakespeare, nem na arte da acção podia ser o de Molière, juntasse aquelas três qualidades – predominando, contudo, a artística – em quase igual plenitude.

 

[72r]

 

II.

 

Àquelas três qualidades chamámos instintos, como, com diferente propriedade, poderíamos ter chamado intuições. Entendemos, em primeiro lugar, empregar um termo por onde logo se visse que são, não faculdades distintas da inteligência, movidas de fora pela vontade, e por isso, como não sofrem alteração, impotentes de exceder os limites próprios da inteligência, que por natureza compreende mas não cria; porém aplicações diferentes da mesma inteligência, que, enformada por impulsos distintos da índole, se consubstancia com eles, para que operem, tomando de cada um a sua distinção especial, como também a sua qualidade genérica, que é a de criar.

Se dos dois termos aplicáveis elegemos, como melhor, o de instinto, foi porque a esta razão uma outra ainda se juntou. Não há dramaturgo verdadeiro sem que exista nele em grau notável uma ou outra daquelas qualidades; e são necessariamente, como acabámos de ver, não faculdades da inteligência, senão disposições da índole. Quando, porém, uma disposição da índole existe em nós em grau notável, e de modo portanto que determina o carácter e as inclinações, essa qualidade, por tal ser, denota que é uma fixação da hereditariedade, embora por variação, e que por isso em tudo se

 

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assemelha – mais, se identifica – ao instinto.

Como os três instintos do dramaturgo, além do que seja comum a todos os instintos, têm, de próprio, vista a sua aplicação, o seu uso necessário da inteligência, com exactidão poderemos chamar-lhes instintos intelectuais. Com o emprego deste termo não esqueceremos, nem que são instintos, para que constantemente oponhamos a sua operação à operação da inteligência, quando a mova só a vontade consciente; nem que são intelectuais, para que, quando essa oposição se faça, não se esqueça que é a substância da qualidade operante, e não o meio per que opera, o por onde ela se distingue da inteligência.

 

III.

 

Quando, guiados por estes princípios (e per que outros, que não estes, nos guiaríamos?), nos propomos determinar, como críticos, qual o valor de um dramaturgo ou de uma obra dramática, temos que empreender uma dupla investigação. Investigaremos, primeiro, se deveras, se trata de um dramaturgo, se apenas de um escritor dramático; ou, per outras palavras, se o dramaturgo o é de instinto, ou de inteligência; se a obra, produto de um impulso natural da índole, pode, pois que o é, significar um valor do seu género, ou se, simples composição da inteligência, de modo nenhum pode ser mais no género a que pertence, que uma habilidade da literatura, bem desempenhada embora no que nela seja estranho a esse género.

Feita que seja esta primeira determinação, e quando dela resulte que a obra, com efeito, provém do instinto, e não procede da inteligência, teremos que determinar a força do instinto, que se moveu para produzi-la, com o que teremos determinado o valor do autor, como dono desse instinto.

Mas a esta investigação especial e concreta cumpre que preceda a genérica e abstracta, dupla como aquela: qual o sinal necessário, pelo qual se distinga objectivamente um produto do instinto de uma composição da inteligência? Qual o sinal gradativo, por onde se meça[1], num produto do instinto, a quantidade ou força do instinto que o produziu?

Esta investigação vamos fazer, e, em um e outro caso, quando feita na generalidade, daremos a sua aplicação especial ao caso da arte dramática. Senhores, por fim, dos princípios que dela resultem, poderemos obviar um pouco a que o defeito virtual da crítica – que é o ser naturalmente subjectiva – nos desvie de um critério, quanto possível, objectivo e científico.

 

IV.

 

Antes, porém, que penetremos no adito do assunto, não será porventura supérfluo que ministremos alguns esclarecimentos, para que, no curso da leitura do que vai seguir-se, não lembrem dúvidas e objecções que afinal procedam, já do mau entendimento dos termos que se empregam, já do conhecimento imperfeito dos li-

 

[74r]

 

mites, em que esta dissertação forçosamente tem que recolher-se.

O termo “drama”, como até aqui o empregámos, serviu de designar o género, e não qualquer das suas espécies. Como o que seja dito do género forçosamente se poderá aplicar à espécie, o que do drama dissemos poderá entender-se da espécie trágica como da cómica, da em prosa como da em verso, da directa ou representativa, que trata das acções humanas e da vida real, como da transferida ou simbólica, em que nem as pessoas são propriamente humanas, nem a acção humanamente possível. Não é assim o que do drama diremos. Como não nos propomos escrever aqui um tratado do drama, indicando todas as suas espécies e a cada uma atribuindo os seus distintivos próprios, senão apenas fazer um estudo, cuja aplicação final tem que convir a um drama representativo, especialmente nos ocuparemos dos característicos dessa espécie do drama. Quando, portanto, doravante escrevermos “drama”, muitas vezes poder-se-á entender o género, toda aquela espécie.

Também os termos “instinto” e “inteligência”, de cuja distinção já demos fé, serão diferençados com maior exactidão nos capítulos que vão ler-se; não há mister, portanto, nem teria cabimento, que por enquanto esclarecêssemos melhor em que se distinguem. Como, porém, ao fazer a distinção exacta entre essas duas qualidades, teremos em vista uma aplicação especial, não nos ocupará estabelecer, entre instinto e inteligência, a distinção completa, própria só de um estudo exclusivamente destinado a esse fim. Lembrados, sim, que estudaremos o drama, e que para esse fim estudamos os instintos intelectuais, de cuja operação ele procede, olharemos, mesmo na distinção geral, menos ao em que ela genericamente consiste, que ao que em que se manifesta nos actos intelectuais, sejam de compreender, sejam de inventar.

Posto isto, para que só possa não compreender quem não possa compreender, podemos dar curso à investigação a que nos prendemos.

 

V.

 

Distinguem-se a inteligência e o instinto quanto aos objectos, a que se aplicam; aos meios, de que para essa aplicação se servem; e aos fins, a que propriamente se destinam. A distinção primária reside, porém, na da natureza dos seus fins.

A inteligência, como tem por fundamento a consciência, tem por fim o conhecimento ou compreensão, que é o com que a consciência se define; o instinto, como tem por fundamento a vida, tem por fim a acção, que é o em que a vida se manifesta. A inteligência tem por isso por próprio o ser passiva e receptiva, como o é a consciência; como tem por fim a acção, o instinto tem por próprio o ser activo e criador. A inteligência, ainda quando, como quando elabora ou dispõe, em certo modo crie, não manifesta nos seus produtos outros característicos, que não sejam os que a distinguem como qualidade essencialmente passiva. O instinto, mesmo quando, como no conhecimento intuitivo, em certo modo compreenda, não revela na sua compreensão outros característicos, que não

 

[75r]

 

sejam os que o distinguem como qualidade essencialmente activa.

Feita esta distinção quanto aos fins, per meio dela desde logo se realiza a distinção quanto aos objectos, implícito como está o conhecimento do objecto, a que uma qualidade necessariamente se aplica, no conhecimento do fim, e que ela necessariamente se destina.

Como tem por fim compreender, a inteligência tem por objecto o universal ou geral; como tem por fim operar, o instinto tem por objecto o particular. Não pode haver compreensão – e por isso se diz que não há ciência – do particular, pois que o único acto de consciência, que pode haver do particular absoluto, é a sensação absolutamente simples. Tão-pouco pode haver acção sobre o geral, pois que, sendo o geral abstracto, a acção sobre o geral seria a simples intenção de operar, a acção virtual apenas.

Como, pois, tem por objecto o universal, a inteligência tem por qualidade a extensão; como tem por objecto o particular, o instinto tem por qualidade a intensão. E a inteligência, como quanto mais forte mais extensa, quanto mais forte for, mais lenta terá que ser. O instinto, per contra, como quanto mais forte mais intenso, quanto mais forte for, mais rápido será. Só dos dois primeiros pormenores desta distinção há, porém, mister que nos ocupemos, sendo que na obra de arte le temps ne fait rien à l’affaire.

Aplicando este critério para, na relação com um objecto a compreender ou um produto de compreender, distinguir as operações da inteligência e do instinto, temos que a inteligência, como por natureza é extensa e ascende ao universal, quanto maior for, com maior número de objectos relacionará aquele em que se emprega; sendo que o instinto, quanto maior for, e por isso mais intenso e concentrado, com menor número de objectos relacionará o em que se aplica, e mais completamente o considerará sozinho. O instinto, pois, quanto mais forte for, mais pronta e exclusivamente se inteirará da essência do objecto, pois que o considera em ele-próprio; a inteligência, quanto mais forte for, mais seguramente resolverá o objecto num sem-número de ligações e de referências, aproximando-se, sim, das suas causas e efeitos, porém afastando-se da sua essência. É por isto que se dá o caso, tantas vezes visto quantas estranhado, de um intuitivo entrar com tamanha segurança na compreensão de um assunto, de que um inteligente, por mais que o considere, e por mais que lhe vá acertando com os acidentes, não alcança a essência verdadeira.

Distingue-se, pois, o produto, que o é primariamente do instinto, daquele, que o é da inteligência, em que, no primeiro, o essencial está com certeza obtido, o acessório ou acidental possivelmente por obter; quando, no segundo, o acessório está mais ou menos expresso, o essencial necessariamente por exprimir.

Podemos, já agora, aplicando este princípio à arte dramática, estabelecer em que se distingue o drama, produto do instinto, do drama, composição da inteligência.

Três são, como no começo vimos, as partes objectivas do drama, e às objectivas temos que atender, considerando um produto feito;

 

[76r]

 

são elas as pessoas, a entreacção das pessoas, e a fábula.

O essencial, quanto às pessoas, é que sejam naturais e humanas, e, como elas se manifestam pelo diálogo, a virtude prima do dramaturgo neste ponto, é que escreva um diálogo natural; quanto à entreacção das pessoas, que provenha de seus caracteres, e não da fábula, que deve ser como a condição, e não a causa, da entreacção; quanto à fábula, que pareça proceder da entreacção dos caracteres e não da invenção do autor, acontecer porque eles existem e não para que eles existam – que pareça, na verdade, ser, não fábula, senão vida.

Parece, sem dúvida, que estes requisitos objectivos dos instintos dramáticos, como são fáceis de expor, serão também fáceis de alcançar; julgareis que uma inteligência prudentemente aplicada conseguirá, sem grande esforço, a sua execução. Como em tudo, quanto é do instinto, assim parece e assim não é. Considerai, com crítica segura, qualquer drama vulgarmente célebre; vereis quão poucas vezes o diálogo, a entreacção, a acção, são como a vida, quão poucas a produção dramática apresenta aqueles sinais necessários do produto do instinto. Escritores inteligentes há muitos, porque há muitos homens inteligentes, e que o são ainda mais por cultivados; o dramaturgo de instinto, porém, tem que nascê-lo, e a natureza é menos pródiga de valores, que os homens de imitação deles.

Ver-se-á isto melhor reparando, depois de nos essenciais do drama, nos seus acessórios. São acessórios principais do drama: quanto às pessoas, que o seu diálogo seja em linguagem inteligível e, quanto caiba, boa; quanto à entreacção das pessoas, que não seja absurda quanto aos seus motivos; quanto à fábula, que seja plausível e, quanto possa ser, nova. Isto, sim, podereis encontrar, não só, com outras qualidades, nos dramaturgos de instinto que sejam também cultivados, com também, sem essas outras, nos bons escritores que a inteligência, não o Destino, fez dramaturgos.

 

VI.

 

Provado que um dramaturgo o é de instinto, não está com isso provado que ele tenha valor como dramaturgo, porém apenas que pode tê-lo. O ser de instinto é a condição do valor, não o valor mesmo. Determinados já, portanto, os sinais necessários, pelos quais se conheça, de-pronto, o produto do instinto, caberá agora descobrir qual possa ser o critério seguro, pelo qual, nesse produto, se distinga o maior do menor, se determine, de um instinto e por isso de seu dono, quanto vale e porque o vale.

Servir-nos-á de guia nesse descobrimento a distinção, que falta fazer, quanto à inteligência e ao instinto; é ela a distinção que entre eles há quanto aos meios, de que se servem.

A inteligência, como tem por objecto o universal ou o geral, tem necessariamente por meio o particular; como alcançaria ela o universal, senão partindo do particular, que tira da sensação, em que ela se apoia, e que só do particular tem conhecimento? O instinto, como tem por objecto o particular, tem forçosamente por meio o geral; pois como procuraria ele o particular, se não

 

[78r]

 

se guiasse pelo geral, que tira da inteligência, per quem se manifesta, e que só no geral tem aplicação?

Como, pois, tem por meio o particular e por natureza a extensão, a inteligência alimenta-se com quanto de particular a amplie e a desenvolva, lhe dê maior facilidade em generalizar – ideias particulares, factos concretos, sensações definidas, com que a memória se enche e o raciocínio se instrui. Como, per contra, tem por meio o geral e por qualidade a intensão, o instinto alimenta-se com quanto de geral o concentre e o defina, lhe dê maior exactidão em operar – não factos, mas resultados; não sensações, porém estímulos; não ideias particulares, senão gerais.

Como a inteligência tem por objecto o universal ou geral e a extensão por qualidade, o seu valor ou força residirá na amplidão com que generalize; como, porém, tem a propriedade de ser passiva e de receber todos os factos ou ideias particulares que a sensação lhe entregue, e como nem todos eles convirão às generalizações que haja de fazer, segue que não há entre o em que consiste a sua força e o em que consiste a sua experiência uma correlação perfeita, pois que não as ideias particulares que recebe, porém o uso que delas faz, é que denota essa força.

Do instinto, como tem por objecto o particular e por qualidade a intensão, o valor consiste na completidão com que se aposse, no objecto particular para que tende, da essência dele, que é o que o denota como particular. Como a essência do objecto, limitada por natureza, necessariamente se define per meio, quanto muito, de um pequeno número de ideias gerais, ele tão completamente se apossará do objecto, quanto mais completamente se esteja em posse de todas as ideias gerais possíveis, que especialmente convenha ao fim de definir a propriedade desse objecto. E como é por natureza activo, e por isso procura, e não recebe, a experiência, o número de ideias gerais, convenientes ao seu fim, que haja aprendido, dependerá da sua força, pois que da força com que houver tendido para esse fim e procurado, portanto, os meios para consegui-lo.[2]

Vemos, pois, que a completidão, com se aposse da essência do objecto particular a que se aplique, e o número de ideias gerais, das possivelmente convenientes ao seu fim, que manifeste, servem indiferentemente de denotar o valor ou força de um instinto. Por isso, sendo que na inteligência é o uso do conteúdo, e não o conteúdo, que denota a força; no instinto o conteúdo e o uso dele são exactamente correlativos, ou coextensos, qualquer deles podendo portanto denotá-la. E, como destes dois sinais do valor, o conteúdo, como consiste em ideias gerais que o uso forçosamente manifestou, é que é o sinal veramente objectivo, temos que, para investigar o valor de um instinto, servir-nos-á de indício seguríssimo o número das ideias gerais, de entre as possíveis, convenientes ao seu fim, de que esse instinto mostre ter-se aproveitado.

 

VII.

 

Das duas partes, de que se compõe esta distinção, a que diz

 

[79r]

 

respeito à inteligência terá sido bem compreendida; a que diz respeito ao instinto pode ser que, por mais abstrusa, o tenha sido menos; e como, para o fim a que olhamos, nos importa sobretudo compreender bem o que aqui se esclareceu do instinto, julgamos próprio o passo para, per meio de um exemplo simples, e seguindo todo o caminho do que houvemos ocasião de afirmar do instinto, tornar clara, de todo, a explicação.

Sirva-nos de exemplo o instinto de comer. O instinto de comer tem por fim operar – a operação, ou acção, de comer. Tem por qualidade a intensão, porque o mais seguro instinto de comer será aquele que mais seguramente escolha para comer só aquilo que serve para ser comido; não a extensão, pois que dum maníaco que, além do que todos comem, comesse terra, não diríamos que tinha um mais perfeito instinto de comer que um homem vulgar. Tem por objecto o particular, porque o que se come há de ser uma coisa particular, ou concreta; ficaria, por certo, mal alimentado quem jantasse pão virtual e a ideia de carne. Tem por meio o geral, porque escolhe, entre todas as coisas, aquelas em quem reside de comum a propriedade de servirem para ser comidas, isto é, aquelas a quem é comum a ideia geral de edibilidade; e a esta ideia geral esse instinto acrescenta, as mais das vezes, algumas outras, como a de palatabilidade, a de utilidade, etc. Mas essas ideias gerais não poderão ser em grande número, porque a essência do objecto, que serve para se comer, é, como tal, limitada. Por último, o mais perfeito instinto de comer mede-se pela aplicação, por quem o possui, do maior número de ideias gerais possíveis, que convenham ao fim de comer, isto é, a definir a essência de um objecto em relação a ele servir para ser comido. Quem, em comer, se guie só pela edibilidade, terá um instinto de comer inferior a quem se guie também pela palatabilidade; e assim por diante.

Não será porventura supérfluo acrescentar que, ao guiar-se per estas ideias gerais, o instinto – como difere da inteligência, e por isso não é, em substância, consciente – faz deles um uso inconsciente; nem sabe que são ideias, nem gerais, nem que as aprendeu, nem que houvera de aprendê-las. Como, porém, as ideias gerais são objecto da inteligência – e por isso dissemos que o instinto as tira da inteligência, embora não entendêssemos que o fizesse conscientemente –, e como portanto não só o instinto, e inconscientemente, senão também a inteligência, e conscientemente, pode aprendê-las e aplicá-las, caberá ainda explicar como se podem distinguir, num mesmo produto em que colaborem instinto e inteligência, quais, das ideias gerais que apareçam aplicadas, as que provêem daquele, as que procedem desta.

Sabedores já do em que o produto do instinto se distingue daquele que a inteligência realiza, não sofrerá dúvida que, das ideias gerais, convenientes a certo fim, que apareçam no produto, serão do instinto as que estiverem integradas no que no produto é essencial, serão só da inteligência as que simplesmente se encontrem ligadas aos acessórios deles, ou constituindo-os.

Isto dito, poderemos entrar na aplicação especial do que genericamente se estabeleceu.

 

[80r]

 

VIII.

 

Temos, pois, que se mede objectivamente o valor ou força de um instinto pelo número das ideias gerais possíveis, convenientes ao seu fim, que empregou. São três os instintos do dramaturgo – o psicológico, o dramático, o artístico. Quais são a ideias gerais possíveis, convenientes ao fim de cada um?

Como eles são, não só instintos, senão instintos intelectuais, essas ideias são necessariamente de duas ordens para cada um: as que a cada um convêm como intelectual, e as que a cada um convêm como psicológico, ou dramático, ou artístico. Ambas essas ordens de ideias definem a essência do objecto de cada instinto destes; mas as primeiras, como são relativas ao género, definem a essência primária, a essência secundária as segundas, porque são relativas à espécie.

Consideremos a primeira ordem de ideias – as que convêm a um instinto intelectual simplesmente como intelectual. Como ele é um instinto, tem por objecto o particular; porém, como é intelectual, tem por objecto esse particular no seu aspecto universal. Como, porém, o aspecto universal de um objecto particular é simplesmente o ser universalizável, e o ser universalizável deriva da ideia geral de universalidade, temos que, afinal, esta ordem de ideias é uma ideia só para qualquer instinto intelectual – a ideia geral de universalidade.

Se aplicarmos este princípio aos três instintos do dramaturgo, veremos que a ideia geral de universalidade, quanto ao instinto psicológico, é que possa dar cada pessoa que crie, não só como particular, senão também como universalizável, isto é, como, sem que deixe de ser particular, representativa da humanidade; quanto ao instinto dramático, que possa dar cada acção, não só como particular, senão também como representativa da acção humana; quanto ao instinto artístico, que possa dar ao conjunto da obra, como ao de cada parte de per si, não só a sua significação particular, senão também a sua significação geral.

Servir-nos-á, para esclarecer estas afirmações, o exemplo do emprego por Shakespeare do instinto psicológico. Confessam os psiquiatras, que na matéria são os competentes, que a pessoa do rei Lear representa um desenho perfeito de um caso de demência senil; nós, simplesmente homens, não há mister que sejamos dementes senis para sentir, no seu conjunto como a cada passo, a verdade humana daquela pessoa. Sendo, pois, tão rigorosamente dada como particular, que pode ser assunto de um diagnóstico, mas, ao mesmo tempo, tão rigorosamente dada como geral, que qualquer de nós escusa de saber isso para a sentir, a pessoa de Lear denota o emprego da ideia geral de universalidade pelo instinto psicológico de Shakespeare. No mesmo autor se encontra, no dizer das mesmas autoridades, um bom número de casos análogos, como o da histero-neurastenia de Hamlet e o da histero-epilepsia de Lady Macbeth.

Nesta altura, porém, reparamos que os característicos objectivos do emprego da ideia de universalidade pelos instintos do dramaturgo coincidem com aqueles característicos que dissemos indicarem a essência do drama, e que serviam de denotar se o autor era dramaturgo de instinto, ou se o era de inteligência. Sendo assim, a ideia geral de universalidade

 

[81r]

 

serve apenas de denotar a essência do instinto intelectual como intelectual, não de medir o seu valor ou força. Não que em absoluto para tal não sirva, ou que não haja, entre os dramaturgos de instinto, graus ou quantidades diferentes na aplicação da ideia de universalidade. Essa ideia, porém, não ministra sinal objectivo nenhum pelo qual se meça[3] o valor do instinto. Por isso, abandonando-a para esse fim, nos voltamos para a segunda ordem de ideias, que, relativas à espécie e não ao género do objecto de cada instinto dramático, definem a sua essência secundária.

 

IX.

 

As ideias gerais possíveis que convenham aos fins dos instintos do dramaturgo, já não como intelectuais, porém como psicológico, dramático e artístico, são necessariamente aquelas ideias gerais que orientam a psicologia, a crítica dramática, e a estética, pois são estas as disciplinas que definem os objectos daqueles instintos. Como, porém, estas disciplinas procedem da operação do espírito na investigação incompletável da verdade, não poderemos determinar todas as ideias gerais, que caibam em cada uma dessas disciplinas, senão apenas aquelas que se estabeleceram até uma certa época; e esta época tem que ser, para qualquer dramaturgo, a época em que ele vive. Para a aplicação final dos princípios, que descobrimos, a um dramaturgo do nosso tempo, temos pois que assentar em quais são as ideias gerais que definem a cultura psicológica, a cultura dramática, e a cultura artística da nossa época.

O talento de um dramaturgo estará manifestado no número dessas ideias, de que cada um dos seus instintos se tenha servido. Quando se dê um caso como o de Shakespeare, cujo instinto psicológico se serviu de ideias psiquiátricas que a sua época lhe não podia ministrar, diremos que se trata de um dramaturgo, não já de talento, porém de génio; mas um dramaturgo de génio, como se serve, pela adivinhação do instinto, de ideias gerais que a cultura não descobriu ainda, e que para ela, portanto, tanto podem ser ideias certas por descobrir, como desvios do recto caminho, não pode nunca ser avaliado pelos seus contemporâneos, a não ser por um ou outro cujo instinto coincida em alcance com o dele. Serve esta advertência de indicar que uma investigação raciocinada, como esta que vamos fazendo, poderá, sendo esclarecida, acertar com a medida exacta do talento de um dramaturgo; não poderá determinar se, além do talento, ele tem génio.

Quais são, porém, a ideias gerais que orientam a cultura da nossa época na psicologia, na crítica dramática, na estética? Vamos vê-lo, e como são em número menor, e de ordem mais simples, as que dizem respeito às duas últimas disciplinas, começaremos por estas, deixando as que se referem à psicologia para serem tratadas em último lugar.

 

 

[1] mida, no original.

[2] [77r] /Do instinto, como tem por objecto o particular e por qualidade a intensão, o valor consiste na completidão com que se aposse no objecto particular para que tende, da essência dele, que é o que o denota como particular. Como o que denota uma coisa como particular é a ideia geral que define a espécie a que esse particular pertence, e como a essência de um objecto, limitada por natureza, necessariamente se define per um número limitado de ideias gerais, o instinto tanto mais completamente se apossará do objecto, quanto mais completamente tenha a posse das ideias gerais possíveis, que especialmente convenham ao fim de definir a essência desse objecto. E como o instinto é por natureza activo, e por isso não só procura, em vez de receber, a experiência, senão procura só a que lhe convém, rejeitando por inútil toda a outra, o número de ideias gerais, de entre as possíveis, convenientes ao seu fim, que haja aprendido, dependerá da sua força, pois que da força que houver tendido para esse fim, e houver procurado portanto os meios para consegui-lo.\

[3] mida, no original.

Notas de edição
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https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2375

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Bibliografia
Publicações
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 96-113.
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