[BNP/E3, 18 – 59–60]
Encontram-se nesta publicação, que é dividida em Secções ou Títulos, dois títulos ou secções que têm nome Literatura e Poesia. Parecerá a muitos absurdo que se estabeleça o que parece ser uma distinção entre géneros para o que não é, aparentemente, mais que uma distinção entre um género e uma das suas espécies.
A poesia é, sem dúvida, e no que a boa lógica tem só de boa lógica, uma espécie do género literatura. Esta é a arte que se forma com palavras; aquela a espécie dessa[1] que se forma com palavras dispostas de determinada maneira. “A prosa”, dizia Coleridge, “é as palavras dispostas na melhor ordem; a poesia as melhores palavras dispostas na melhor ordem.” Assim é, ou quase assim.
A palavra é, numa só unidade, três coisas distintas – o sentido que tem, os sentidos que evoca, e o ritmo que envolve esse sentido e estes sentidos. Assim a palavra “alma” contém em si como sentido directo a designação da essência mental do homem, distinta, por um lado, da inconsciência do corpo ou dos corpos, por outro da possível superconsciência de uma consciência abstracta universal. Mas, à parte isso, a palavra “alma” sugere um grande número de sentidos acessórios, que variam de indivíduo para indivíduo, conforme as preocupações, a cultura e outros elementos que contribuam para a associação de ideias: para um estará inevitavelmente implícito na palavra o sentido secundário de “ânimo”, “intensidade de carácter”; para outro o sentido secundário de “espiritualidade”, “misticismo”; para um terceiro o sentido secundário de “irrealidade”, “intangibilidade”. Finalmente, a palavra “alma” tem um som, que constitui o seu ritmo e com que colabora no ritmo formado com as palavras que lhe sejam anexas, com ela formando o texto. É por isto que o mais claro dos textos começa, quando é aprofundado ou meditado por este ou aquele, a abrir-se em divergências de íntimo sentido de um para outro: é que, havendo acordo, em geral, quanto ao sentido directo ou primário da palavra, começa a o não haver quanto aos sentidos indirectos ou secundários. No ritmo de novo os indivíduos se aproximam uns dos outros, salvas diferenças de pronúncia e preferências auditivo-mentais.
Decomposta, assim, em três elementos constitutivos para fins lógicos, não os oferece a palavra distintos na realidade da sua vida; são consubstanciados, e a impressão resultante da palavra, e portanto das palavras dispostas em discurso, resulta[2] de uma percepção sintética em que se entrevivem todos três. Isto é importante de notar, sobretudo, quanto à valia e ao alcance do ritmo, que não existe na palavra, como no som, independente e livre, mas preso aos sentidos que a palavra comporta ou sugere. A palavra “César”, em si mesma frouxa de som, tem contudo um relevo ritmo em certo modo imperial, porque imperial é a sua origem e a evocação que a memória dela nos traz. Um alinhamento de palavras sem sentido conjunto, ou de pseudo-palavras inventadas com belos sons, não agrada por bem que soe: não é mais que música absurda e postiça.
[60r]
Lembrados sempre desta consubstanciação e interpenetração dos três elementos da palavra, podemos, contudo, sem realizar abstracções, distinguir três tipos de arte literária, conforme se olhe mais ao sentido primário da palavra, aos seus sentidos secundários, ou ao ritmo – ou, mais propriamente, visto ao que acaba de se ver, à projecção no ritmo da vida inteira da palavra.
A arte que vive primordialmente do sentido directo da palavra chamar-se-á propriamente prosa, sem mais nada; a que vive primordialmente dos sentidos indirectos da palavra – do que a palavra contém, não do que simplesmente diz – chamar-se-á convenientemente literatura; a que vive primordialmente da projecção de tudo isso no ritmo, com propriedade se chamará poesia.
|Tudo parece arbitrário, e, sem dúvida, em certo modo o é, pois que toda distinção lógica é arbitrária e pragmática, {…}
[60v]
Aos que[3] a felicidade
Dura, chorará a vista
[1] dessa /ela\
[2] resulta /(provém)\
[3] Aos que /E se\